Conheça os objetivos de advocacy do IFH para 2023

Conheça os objetivos de advocacy do IFH para 2023

Em 2023, seguiremos fortalecendo os dois objetivos de Advocacy do ano anterior: aumentar o acolhimento em família acolhedora no Brasil de 6,6% para 20% até 2025 e diversificar a oferta de programas, benefícios e serviços que apoiem os jovens que saíram ou sairão dos serviços de acolhimento pela maioridade. 

Vamos falar sobre adoções mal-sucedidas?

Vamos falar sobre adoções mal-sucedidas?

Quando alguém pensa em adotar uma criança, em geral, sonha com uma família feliz e completa, vivendo momentos de sorrisos e carinho. Quem sonha com um projeto de família raramente inclui nas cenas imaginadas as birras, os confrontos, e a desobediência que fazem parte da rotina de pais e filhos/as (independente se biológicos ou adotivos). Também do lado da criança e adolescente que está no acolhimento, há muita idealização e expectativas em relação a família que virá e de como será sua convivência. Leia nosso conteúdo e saiba mais.

ACOMPANHAMENTO DE ADOLESCENTES DURANTE E PÓS ACOLHIMENTO: UMA EXPERIÊNCIA NA ARGENTINA

ACOMPANHAMENTO DE ADOLESCENTES DURANTE E PÓS ACOLHIMENTO: UMA EXPERIÊNCIA NA ARGENTINA

No dia 14 de dezembro de 2022, o Instituto Fazendo História realizou a oficina online “Acompanhamento de adolescentes durante e pós acolhimento: uma experiência na Argentina”, que contou com a participação da especialista Mariana Andrea Incarnato, psicóloga pela Universidade de Buenos Aires, mestre em "Desenho e Gestão de Políticas e Programas Sociais" e fundadora da Associação Civil Doncel e da Rede Latino-Americana de Egressos dos Serviços de Proteção, que hoje tem 12 países membros. Atualmente, Mariana é consultora de várias organizações como UNICEF e assessora o legislativo da Cidade de Buenos Aires. Para acompanhá-la, realizando a tradução simultânea, tivemos também a presença do tradutor Victor Barrionuevo.

Mariana organiza a sua fala em dois momentos. Primeiro, apresenta a Política Pública da Argentina relativa ao acompanhamento do processo de saída dos adolescentes dos serviços de acolhimento, estruturada pela Lei Federal de Acompanhamento de Egressos. Para fundamentar o seu relato, traz um vídeo que indica como essa lei, regulamentada em 2017, a partir de ampla mobilização e participação da sociedade civil, é a primeira na América Latina que reconhece o direito dos adolescentes em situação de acolhimento de serem acompanhados em sua transição para a vida adulta, sendo parte da política de cuidado. É dividida em duas etapas: a de preparação para a saída do serviço, que tem início aos 13 anos e pode se manter pelo tempo que o adolescente precisar desse suporte; e uma segunda, a partir dos 18 anos, que inclui o apoio econômico de 80% de um salário mínimo para aqueles que estiveram há pelo menos 6 meses no acolhimento, contribuindo para sua estabilidade, frente a uma situação de fragilidade inerente a esse período.

Além disso, a especialista aborda, como parte dessa política, a existência de pessoas referentes, escolhidas pelos adolescentes, os acompanhando nessa fase de transição e que, para tal, passam por um percurso de formação e de certificação pelo Estado que garanta as habilidades necessárias ao exercício dessa função. Esse processo é mediado por um instrumento denominado Plano de Trabalho para o Egresso, o qual contempla diferentes dimensões, como educação, família, identidade, emprego e moradia, e permite ao referente estruturar junto ao jovem um percurso singular de acompanhamento, indicando qual o ponto de partida e suas prioridades.

Em seguida, Mariana atenta para a particularidade do processo de aprovação dessa lei, tendo como eixo protagônico a reflexão e a mobilização de jovens que já haviam passado pela situação de acolhimento e destacando a questão de seu acompanhamento como um problema real a ser enfrentado pela sociedade. Ela aborda que hoje, cerca de 3200 jovens argentinos participam do Programa de Acompanhamento para o Egresso (PAE), com apoio econômico e emocional por parte do estado em seu processo de transição, e aponta três aspectos principais levantados pelos participantes, quando indagados sobre sua relevância: importância de um marco simbólico de continuidade após o acolhimento; existência de um apoio financeiro singular em relação aos outros que o jovem pode buscar para compor sua renda e garantir condições mínimas de estabilidade; e a possibilidade de continuar estudando a partir desse suporte, o que pode implicar em maiores oportunidades de emprego no futuro.

A especialista também problematiza as dificuldades que identifica em relação à implementação dessa política na Argentina, que passam pela lentidão dos estados na compreensão acerca do que se trata o programa, pela formação de recursos humanos qualificados e pelo fato de o jovem precisar ainda ser intermediado por um terceiro para o seu ingresso.  Ela traz como pano de fundo dessas questões a trajetória de longa institucionalização que marca o trabalho com esses adolescentes na América Latina, vinculada ao modo histórico de cuidado da infância e da adolescência que, de maneira geral, não reconhece o processo de autonomia progressiva. Frente a tudo isso, ela salienta a relevância dessa lei como um marco, intervindo na forma de olhar para a política de proteção integral e ampliando a garantia de direitos.

Em um segundo momento de sua apresentação, Mariana compartilha algumas reflexões que vem desenvolvendo ao longo desses anos em torno dos desafios em relação à tensão entre a autonomia progressiva e a proteção integral.  Ela traz como, dentro do acolhimento, os dispositivos institucionais criados para garantir a proteção das crianças e adolescentes, impregnados pelas responsabilidades legais e pela cultura, podem, muitas vezes, atentar contra a autonomia progressiva, ou seja, seu modo singular de inscrever a sua biografia e poder crescer com direitos. E organiza a exposição a partir de 10 elementos apontados como desafios aos trabalhadores na área do acolhimento e que indicam caminhos para se pensar nessas questões:

 

1) As crianças e adolescentes tomam decisões, mas não são totalmente responsáveis por elas. Muitas dessas decisões fazem parte do percurso de poder entender ou vivenciar algo pela primeira vez e a importância da proteção está justamente em garantir que eles possam errar, cometer seus equívocos.

2) A liberdade é um direito humano primordial. São nas pequenas práticas do cotidiano que as crianças e adolescentes podem exercitar as liberdades individuais, seja tomando decisões, seja tendo oportunidades para que encontrem seus gostos, interesses e possam experimentar diferentes situações. Para o adolescente, saber que tem a liberdade de ir embora, muitas vezes, é a condição para que ele fique em um serviço.

3) Autonomia progressiva é tentar, tentar e tentar outra vez na vida cotidiana. A autonomia progressiva precisa ser experienciada na prática e os espaços das instituições devem estar habilitados para tal, para que possam, por exemplo, escolher sua comida ou a roupa que vão usar.

4) Cada sujeito desenvolve a autonomia progressiva segundo seu crescimento, de modo único, e assim também serão suas transições. A autonomia está relacionada à capacidade do sujeito de tomar conta de seus atos e suas consequências, também antecipando-as, o que se dá a partir de um percurso próprio em relação à sua identidade.

5) Não existe a autonomia progressiva, existem as experiências para o exercício da autonomia progressiva. À criança e ao adolescente precisam ser dadas as oportunidades para estar no mundo, tomando decisões e se responsabilizando por elas, de acordo com os períodos de desenvolvimento, o que não pode acontecer apenas aos 17 anos, quando o adolescente está prestes a sair do serviço.

6) O acesso à informação e o uso da tecnologia são direitos. Um grande dilema que se coloca aos trabalhadores dos Serviços de Acolhimento é como cuidar dos vínculos pelas tecnologias virtuais, administrando o seu uso e informando em relação aos riscos presentes nas plataformas.

7) Olhar e observar as crianças e os adolescentes em suas trajetórias de vida significa estar disponível. O lugar de um referente estável deve se pautar a partir de três perguntas: Você precisa de ajuda? Como posso te ajudar?  Você quer que alguma outra pessoa te ajude?

8) Ter amigos e compartilhar com outras crianças e adolescentes do acolhimento, mas principalmente de fora dos serviços. É muito significativo às crianças e adolescentes construírem vínculos reais com pares e não intermediados pelo saber técnico, até para que lidem com os desafios em relação às experiências de ruptura.

9) Não supor nem dar por certo o que a criança ou o adolescente sente ou pensa sobre si mesmo, sobre você ou sobre o acolhimento. É um direito da criança e do adolescente serem perguntados sobre como avaliam o cuidado a eles ofertado, garantindo que a possibilidade de participação seja um processo de longa duração, que começa na infância, relacionado ao dar a palavra.

10) Todas as crianças e adolescentes que sofrem querem resolver seus problemas e pensam sobre isso. O desafio está na geração de ferramentas para que sejam escutados, a partir de espaços de apoio para que pensem, construam e compartilhem seus pontos de vista e, assim, participem de forma significativa e segura na reforma do sistema.

Mariana finaliza a sua apresentação reforçando que, nesse momento que vivemos, a reforma do sistema de cuidado se torna urgente e que os resultados negativos de hoje estão vinculados ao fato de as palavras das crianças e adolescentes terem ficado de fora das discussões e das decisões. E aponta como, nesse percurso de mudanças, é preciso dar espaço à reparação de danos, “reformando o sistema para frente, mas também para trás”: é necessário reconhecer o que foi feito de errado e reparar as pessoas que viveram muitas situações de injustiças e violências por conta de um sistema gerado por nós mesmos.

Após a fala de Mariana, os participantes da oficina puderam dialogar com a especialista, trazendo questões e compartilhando o que acharam e o que pensaram, a partir de suas experiências com a temática e dentro do contexto brasileiro.

Para assistir ao vídeo com a a gravação completa da oficina, clique aqui.

Sexualidade, identidade de gênero e orientação afetivo sexual

Sexualidade, identidade de gênero e orientação afetivo sexual

No dia 26 de outubro, foi realizada no Instituto Pólis, no centro da cidade de

São Paulo, a última oficina presencial de 2022 com o apoio do FUMCAD (Fundo

Municipal da Criança e do Adolescente). Com o tema Sexualidade, identidade de

gênero e orientação afetivo sexual, o evento era destinado aos atores da rede da

assistência social, como psicólogos, assistentes sociais, orientadores socioeducativos e

educadores sociais.

 PENSANDO VIOLÊNCIAS: MODOS DE PERCEBER E REFLEXÕES SOBRE A ESCUTA

PENSANDO VIOLÊNCIAS: MODOS DE PERCEBER E REFLEXÕES SOBRE A ESCUTA

No dia 22 de novembro de 2022, o Instituto Fazendo História realizou a oficina online “Pensando violências: modos de perceber e reflexões sobre a escuta”, que contou com a participação das especialistas Beatriz Saks Hahne, psicóloga pela PUC-SP, mestre e doutoranda pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e atuante com juventudes em contexto de violências e em cumprimento de medidas socioeducativas, além da formação de profissionais, e Arlete Salgueiro Scodelario, psicóloga, psicanalista, especialista em Violência Doméstica pelo Lacri/IPUSP, coordenadora da Área de Formação do Centro de Referência às Vítimas de Violência (CNRVV) e docente do Instituto Sedes Sapientiae.

SERVIÇOS DE ACOLHIMENTO E ESCOLAS: PARCERIAS POSSÍVEIS

SERVIÇOS DE ACOLHIMENTO E ESCOLAS: PARCERIAS POSSÍVEIS

No dia 18 de outubro de 2022, o Instituto Fazendo História realizou a oficina online “Serviços de acolhimento e escolas: parcerias possíveis”, que contou com a participação da especialista Simone Santana, artista, educadora social, pedagoga, que atuou em Serviço de Acolhimento Institucional e é militante do Fórum da Criança e do Adolescente de São Mateus.

OFICINA – TRABALHO EM REDE E GARANTIA DOS DIREITOS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA

OFICINA – TRABALHO EM REDE E GARANTIA DOS DIREITOS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA

No dia 16 de setembro de 2022, o Instituto Fazendo História realizou a oficina online “Trabalho em rede e garantia dos direitos da pessoa com deficiência”, que contou com a participação dos especialistas Kezia Paz, graduada em Musicoterapia pela FMU, trabalhadora do SUS e do SUAS e atuante no atendimento clínico a crianças e jovens com diferentes deficiências, e Juliana Flor Silveira, psicóloga formada pela PUC-SP, com histórico de atuação nas políticas públicas de assistência social e de saúde e que hoje atua no Capsij da Vila Maria como psicóloga e articuladora de rede de saúde mental.

Acolhimento em família acolhedora: projeto, programa ou serviço?

Acolhimento em família acolhedora: projeto, programa ou serviço?

Tem crescido no Brasil, ainda que timidamente, o tema do acolhimento familiar. Talvez você já tenha ouvido falar a respeito, mas não saiba exatamente do que se trata e ficou com muitas dúvidas. Afinal de contas, isso é um projeto, programa ou serviço? É uma iniciativa privada de algumas organizações sociais ou um serviço público? Pretendemos nesse texto te ajudar a entender um pouco mais a respeito.

O acolhimento, seja institucional ou familiar, é uma medida provisória e excepcional, ou seja, será aplicada apenas após se esgotarem as possibilidades de manutenção segura da criança e/ou do adolescente em sua família de origem, conforme previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)1 (1990). O ECA prevê ainda, em seu Art. 19 § 2º, que a permanência em medida protetiva não deverá se prolongar por mais de 18 meses, sendo prorrogada somente para atender necessidades que tenham em vista o melhor interesse da criança e/ou do adolescente. Nessas situações, o Estado tem o dever de garantir, ainda que temporariamente, cuidado e proteção integral para crianças e adolescentes por meio de serviços de acolhimento institucional ou familiar.

Os serviços de acolhimento são, portanto, públicos e compõem o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) (2005) e subdividem-se em:

→ Serviços de Acolhimento Institucional (abrigo e casa-lar); e

→ Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora

O Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora (SFA), assim como o acolhimento institucional, é de responsabilidade do gestor da política de assistência social no município, ou seja, a Secretaria de Assistência Social ou congênere. Por ser reconhecido como política pública nacional contínua, trata-se de um SERVIÇO PÚBLICO que possibilita cuidado temporário, em casas de famílias acolhedoras, para uma criança, adolescente ou grupo de irmãos que no momento não podem permanecer na sua família de origem. Essas famílias são selecionadas e preparadas para oferecer atenção adequada para cada criança e adolescente que permanecer sob seus cuidados, proporcionando uma experiência de segurança e afeto em um momento difícil de suas vidas, até que possam retornar para sua família de origem ou, quando isso não for possível, ser encaminhada para adoção. A criança e/ou adolescente (na casa da família acolhedora) e sua família de origem são acompanhados por assistentes sociais e psicólogos do SFA durante todo o processo.

Desde a década de 1990, iniciativas pontuais de acolhimento em famílias acolhedoras já ocorriam no Brasil, motivadas por necessidades e oportunidades locais. Tais experiências organizaram-se como projetos ou programas, mas foi apenas em 2004 que a Política Nacional de Assistência Social inseriu o Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora, como medida protetiva, na Proteção Social Especial de Alta Complexidade.

Mais tarde, em 2009, a Lei n.º 12.010 modificou inúmeros artigos do ECA, dentre eles os Arts. 34 e 101, inserindo o acolhimento familiar no marco legal brasileiro. Com essa alteração no ECA, o SFA passou a ser reconhecido como um instituto jurídico, ganhando segurança legal para sua execução e regulamentação. Tornou-se, também, uma modalidade de acolhimento que deve ser oferecida preferencialmente ao acolhimento institucional - para as crianças e os adolescentes que necessitarem de medida protetiva no país.

 

Se é um serviço público, pode ser executado por organizações da sociedade civil?

Seguindo as orientações legais, a execução de um Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora poderá ocorrer de duas formas:

→ Execução direta: quando o SFA é executado pelo órgão gestor municipal no qual está alocada a Política de Assistência Social, que é o responsável pela organização e oferta do SFA, incluindo a contratação/designação dos profissionais, infraestrutura, manutenção e demais aspectos necessários ao seu funcionamento;

→ Execução indireta: quando o órgão gestor de assistência social faz parceria com uma Organização da Sociedade Civil e esta passa a ser responsável pela execução do SFA, ou seja  a gestão pública firma parceria para execução de atividades de sua competência e responsabilidade, mediante um Termo de Colaboração. Esse processo acontece através de um chamamento público para seleção/formalização de parceria com a OSC que melhor atender às exigências do edital. Será selecionada a OSC com as condições e capacidades técnicas necessárias para integrar a rede de atendimento municipal. Ao gestor público cabe a gestão, monitoramento e avaliação durante o período de vigência do termo.

                Embora uma Organização da Sociedade Civil, através da execução indireta, receba recursos para executar esse serviço, nem sempre o valor do convênio com o gestor público é suficiente para manter a estrutura e a qualidade do trabalho. Muitas vezes, a entidade precisa fazer campanhas, estabelecer outras parcerias e captar recursos para cobrir despesas extras que não estão previstas no orçamento público. Por este motivo, ainda se faz necessário reivindicar a ampliação dos recursos federal, estaduais e municipais para a assistência social, sobretudo para serviços de alta complexidade, como é o caso dos serviços de acolhimento.

 

Um serviço público que depende da parceria com a sociedade

Diferentemente do acolhimento institucional, o acolhimento em família acolhedora é uma modalidade que depende do envolvimento da sociedade civil. Por isso é fundamental, para a concretização do Serviço, a noção de corresponsabilidade entre o Estado e a sociedade, por meio da participação das famílias acolhedoras no cuidado e proteção das crianças e/ou adolescentes afastados temporariamente de suas famílias. Outra condição para que o SFA seja bem-sucedido é a sua articulação em rede, junto a outros serviços socioassistenciais, de saúde, educação e demais políticas públicas que se fizerem necessárias, bem como ao Sistema de Justiça. Para sua execução, é instituída uma equipe profissional - composta por coordenador e equipe técnica (assistente social e psicólogo, entre outros). Entre suas atribuições, está o processo de seleção, formação e acompanhamento das famílias acolhedoras para que possam desempenhar adequadamente sua função. A equipe também realiza o acompanhamento das crianças e/ou adolescentes acolhidos, das suas famílias de origem e/ou extensa, além do trabalho articulado e corresponsável com a rede de serviços e a comunicação permanente com o Sistema de Justiça, incluindo o envio de relatórios periódicos para o Judiciário.

 

Vale sempre lembrar: acolhimento familiar não é adoção e nem uma via para adotar

Como uma medida de proteção, o SFA deve realizar um trabalho psicossocial levando sempre em consideração o caráter excepcional e provisório do acolhimento. Enquanto a criança e/ou adolescente permanece acolhido pela família acolhedora, um intenso trabalho é desenvolvido com a família de origem, visando o seu fortalecimento e organização, com o propósito de preparação para uma reintegração familiar protegida, sempre que isso for possível e representar o melhor interesse da criança e/ou do adolescente. Considera-se família de origem os pais biológicos e outros parentes próximos (família extensa) com os quais eles mantêm vínculos de convivência e afetividade. A equipe técnica do SFA e a rede de serviços precisam, juntamente com a família, buscar alternativas que permitam o resgate da responsabilidade do cuidado e da proteção dos seus filhos. Para isso, é imprescindível acompanhar de perto e de forma sistemática todas as partes envolvidas (família de origem, família acolhedora, criança e/ou adolescente). Esse acompanhamento envolve o Sistema de Justiça - para que, com qualidade, as ações ocorram o mais rapidamente possível, evitando maiores danos às crianças e adolescentes. Após a reintegração, todo o grupo familiar continua sendo acompanhado pela rede articulada de serviços, em conjunto com o Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora. Na impossibilidade de retorno à família de origem e/ou extensa, deve-se realizar o encaminhamento para uma família por adoção, garantindo assim o direito à convivência familiar e comunitária.

 

Será que esse serviço público vale mesmo a pena?

O Brasil tem uma longa história de institucionalização de crianças e adolescentes e por isso ainda estamos acostumados a imaginar que os abrigos ou as casas lares (serviços de acolhimento institucionais) são os únicos locais ou os mais indicados para cuidar de quem está temporariamente afastado de sua família, ainda mais quando se trata de meninos e meninas pobres e negros.

A história de institucionalização de crianças e adolescentes no Brasil passou por enormes e significativas mudanças a partir da Constituição da República Federativa do Brasil (CF) (1988) e do ECA. Tais legislações suscitaram um novo olhar e, consequentemente, uma nova forma de operacionalização dos serviços de acolhimento institucional com vistas à sua reorganização dentro da doutrina de proteção integral. Essa modalidade de acolhimento passou, desde então, por um processo gradual de reordenamento, melhorias e transformações. Já os Serviços de Acolhimento em Família Acolhedora surgiram dentro da nova doutrina e, portanto, vêm sendo instituídos e executados, desde sua implantação, de acordo com os princípios estabelecidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e demais normativas legais.

O acolhimento em família acolhedora é uma realidade consolidada em muitos países, especialmente na Europa e na América do Norte. Nos últimos anos, diversas pesquisas têm demonstrado os benefícios do cuidado em ambiente familiar em detrimento do cuidado institucional de crianças e adolescentes que precisam da medida de proteção. Outra vantagem da modalidade de acolhimento em família acolhedor é o custo do Serviço para o município. Veja abaixo alguns desses benefícios para o público atendido e para os responsáveis pela gestão do serviço.

Benefícios do SFA para as crianças e adolescentes acolhidos:

→ Atendimento personalizado e individualizado, em ambiente familiar, permitindo a organização de uma rotina focada na criança e/ou no adolescente e não voltada ao funcionamento da instituição, com rotina coletiva;

→ Estabelecimento de vínculos afetivos mais estáveis e próximos com adultos de referência, favorecendo seu desenvolvimento de forma saudável;

→ Maior acesso à convivência comunitária e, consequentemente, uma maior possibilidade de vivenciar vínculos com os membros dessa comunidade.

Benefícios do SFA para o gestor público:

→ Menores custos se comparados aos do acolhimento institucional, pois não há despesas oriundas da oferta ininterrupta do serviço, como tarifas de água, luz, aluguel, manutenção de imóvel, pagamento permanente de um quadro profissional mais extenso (educadores, cuidadores, auxiliares, serviços gerais), entre outros custos;

→ Maior possibilidade de investimento da equipe técnica na atuação psicossocial, por meio de estudos de caso e articulação da rede de serviços no território, uma vez que há menos demandas de caráter institucional;

→ Otimização de custos com recursos humanos e demandas de gestão de pessoas, visto que no caso do SFA a equipe profissional é reduzida, por ser mais voltada às funções de coordenação e técnicas e menos àquelas operacionais e de cuidado com as crianças e adolescentes (desempenhadas pelas famílias acolhedoras);

→ Diminuição das demandas relacionadas à manutenção do cotidiano institucional: alimentação, transporte, vestuário, organização da rotina das crianças e adolescentes, entre outros.

Em 2020, o Instituto Fazendo História se juntou a atores governamentais e não governamentais, pesquisadores e especialistas no assunto para formar a "Coalizão pelo Acolhimento em Família Acolhedora", que procura unir esforços para promover a ampliação do Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora no Brasil, dos atuais 4.9% para pelo menos 20% de crianças e adolescentes acolhidos nesta modalidade até 2025. Buscamos, assim, uma realidade em que a priorização de atendimentos em SFA, já prevista em Lei, torne-se prática. Se você se interessou e quer saber mais, visite o site da Coalizão familiaacolhedora.org.br e o Guia de Acolhimento Familiar que proporciona uma compreensão ampla sobre o que é o Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora e suas principais características.

Bibliotecas vivas e territoriais: serviços parceiros do programa Fazendo Minha História realizam atividades lúdicas com livros no território

Bibliotecas vivas e territoriais: serviços parceiros do programa Fazendo Minha História realizam atividades lúdicas com livros no território

As bibliotecas deviam ser declaradas da família dos aeroportos, porque são lugares de partir e de chegar. Os livros são parentes diretos dos aviões, dos tapetes-voadores ou dos pássaros. Os livros são da família das nuvens e, como elas, sabem tornar-se invisíveis enquanto pairam, como se entrassem dentro do próprio ar, a ver o que existe para depois do que não se vê. O leitor entra com o livro para o depois do que não se vê. O leitor muda para o outro lado do mundo ou para outro mundo, do avesso da realidade até ao avesso do tempo. Fora de tudo, fora da biblioteca. As bibliotecas não se importam que os leitores se sintam fora das bibliotecas. (Valter Hugo Mãe. Contos de cães e maus lobos, 2015, p. 149)


O Programa Fazendo Minha História tem como objetivo proporcionar meios de expressão para que crianças e adolescentes em situação de acolhimento institucional possam entrar em contato, conhecer e registrar sua história de vida. Para isso,  uma das estratégias do programa, é a implementação de uma biblioteca com diversidade e qualidade em cada um dos serviços de acolhimentos parceiros.

Sabemos que a literatura tem um papel transformador para o desenvolvimento da imaginação, dos sentimentos, emoções e auxilia na construção de narrativas sobre si, sobre o  outro e sobre o mundo em que vivemos.   

Como forma de incentivo a literatura,  é uma prática comum o programa estimular que os serviços desenvolvam, de tempos em tempos, eventos literários para dar vida ao acervo literário implementado em cada casa . Por esse motivo, no 1º semestre deste ano, alguns serviços parceiros do programa Fazendo Minha História em São Paulo realizaram atividades literárias em seus territórios. As ações foram construídas com educadores/es e técnicas/os dos serviços de acolhimento e, em alguns casos, articulados com outros serviços da rede socioassistencial. 

Os encontros foram para proporcionar experiências diferentes com os livros porque acreditamos que não precisam estar necessariamente em bibliotecas para que se viva experiências literárias. Afinal, todas as pessoas envolvidas no evento, desde crianças, adolescentes e profissionais da rede são bibliotecas vivas que fazem travessias importantes, para além dos livros, fazem história no território, articulam círculos com brincadeiras, fantasias e contam histórias orais. Isso nos remete às lembranças das tradições vivas dos povos ribeirinhos, quilombolas e indígenas, que além da tradição oral nos deixaram a diversidade do que é viver a literatura, sobretudo, na potência do encontro, da união, assim como fizeram os serviços de acolhimento parceiros.  

 Em relação aos livros, o Programa Fazendo Minha História considera de fundamental importância a circulação do acervo pelo território, permitindo que atravesse as histórias e a vida das crianças, dos adolescentes e  da comunidade que ali vivem. Quando os livros circulam pelo território de forma simples e lúdica, aproximam a literatura da população, auxiliam na formação leitora, na mobilização e formação de mediadores de leitura,  além de viabilizarem a garantia dos direitos estabelecidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente proporcionando acesso à cultura, ao lazer e à convivência comunitária. 

Esta prática foi  pensada e proposta pelo programa e se aproxima muito do objetivo das bibliotecas comunitárias, presentes em várias regiões e lugares do país (principalmente nas periferias), em que a experiência com a literatura se constitui com o território e com a comunidade, e não somente em uma vivência individual. 

Visando ampliar esta prática, a seguir, compartilhamos algumas atividades que foram realizadas no 1º semestre deste ano, para suscitar ideias e inspirações para se trabalhar com os livros e a literatura em contexto lúdico e territorial.


SAICA São Mateus 5

A festa do livro do serviço ocorreu em um evento junto com Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSij), promovendo um “Rolê Cultural’’ com várias atrações, brincadeiras, leituras e shows. Foi uma forma do SAICA  trazer a comunidade para entender o que é o Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes e a contribuição do FMH (Fazendo Minha História) dentro do serviço para o público acolhido. 


Neste espaço foi explicado o que é FMH (Fazendo Minha História), suas contribuições e convidamos a comunidade para participar das atividades com os livros. 

Foram realizadas rodas de conversa sobre o brincar, sobre a importância da leitura, o resgate da história de vida e como o FMH contribui para os/as usuários/as da rede: Centro de Atenção Psicossocial infantojuvenil CAPS IJ, Serviços de Proteção Social às Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência (SPVV), Enorme Abraço e Centro Especializado em Recuperação (CER). Foi um momento muito importante para as crianças, adolescentes, colaboradoras e técnicos da rede intersetorial de proteção à infância e adolescência. 

São Mateus 1

Neste serviço, a dupla gestora do FMH (técnicas/os do SAICA que acompanham a metodologia do programa) escolheu construir o evento literário por meio de uma festa no próprio SAICA. Os/as convidados/as especiais da festa eram as crianças e adolescentes acolhidos/as, seus familiares e parceiros do FMH. O evento foi organizado pela equipe técnica e educadoras(es) que propuseram um desfile-fantasia com os personagens dos livros que as crianças e adolescentes mais se identificam. Todos se preparam bastante para escolherem e produzirem as suas fantasias e a decoração da festa. Após o desfile ocorreu também uma roda de mediação de leitura. Foi uma tarde muito gostosa, de brincadeiras, imaginação e literatura!

SAICA Casa Edith Stein

Os/as técnicos/as deste serviço optaram por realizar o seu evento literário através de um piquenique com rodas de mediação de leitura.  O piquenique contou com a participação de educadores/as, das crianças e adolescentes acolhidos/as que também puderam chamar alguns amigos/as da escola. Foi um momento  de descontração, diversão e surpresas, pois estar em um ambiente externo com outras pessoas, estimulou a leitura de alguns adolescentes que queriam compartilhar as leituras que mais gostavam. Também foi uma estratégia do serviço modificar a decoração da casa (incluindo uma árvore cheia de livros e um varal de livros na entrada da casa) para mobilizar as crianças e adolescentes para a atividade literária. 

Luiza M. Escardovelli Alcântara, psicóloga e técnica do Programa Fazendo Minha História
Laís Boto, coordenadora do Programa Fazendo Minha História 



Referências Bibliográficas


Como criar uma biblioteca comunitária no território? Educação e território, novembro de 2018. Disponível em: https://educacaoeterritorio.org.br/metodologias/como-criar-uma-biblioteca-comunitaria-no-territorio/








OFICINA – ACOLHIMENTO E RELIGIÃO: VAMOS FALAR SOBRE ISSO?

OFICINA – ACOLHIMENTO E RELIGIÃO: VAMOS FALAR SOBRE ISSO?

No dia 19 de agosto de 2022, o Instituto Fazendo História realizou a oficina online “Acolhimento e religião: vamos falar sobre isso?”, que contou com a participação dos especialistas Valeria Pássaro, pedagoga, com especializações e larga experiência na área de educação e do acolhimento, e Luiz Eduardo Berni, doutor em psicologia (USP), mestre em ciências da religião (PUC-SP) e pesquisador do Ateliê de Pesquisa Transdisciplinar (APTD).

Valéria inicia a sua apresentação abordando como é importante abrir espaços para refletir sobre temas tidos como “quase ocultos” dentro da área do acolhimento, sendo a religião um deles: algo que pouco se fala, mas que, de alguma maneira, muito se vive nos serviços. Coloca, então, que falar sobre religiosidades nos faz pensar sobre o acolhimento enquanto um espaço de inclusão e traz como questões: será que os serviços de acolhimento são, de fato, espaços nos quais é possível incluir as diferenças, também acerca das diversas crenças e fés das pessoas? Será que os profissionais desses serviços perguntam sobre a religião das crianças e adolescentes? No cotidiano, como escutamos sobre as religiões com as quais se identificam, e também de suas famílias?

A especialista discute sobre a importância de se refletir sobre o lugar da religião em nossas vidas, ao considerarmos os serviços de acolhimento como espaços coletivos nos quais a vida circula. E, nessa perspectiva, ela se remete às épocas em que as pessoas se baseavam em rituais enquanto marcadores, acompanhando o desenvolvimento humano, dando ritmo à vida, e trazendo resposta sobre perguntas que até hoje nos acompanham, também dentro dos serviços: De onde vim? Onde estou? Para onde vou? Partindo dessa ideia, apresenta que, na área do acolhimento, existem rituais importantes, como, por exemplo, na chegada de um novo membro ao serviço, marcando um novo momento no grupo. Como acolhemos esse sujeito e, dentro desse todo que ele traz, a questão da religião? Reflete como, de maneira geral, ela é pouco provocada e escutada, considerando ainda que, apesar de vivermos em um país que se diz laico, na área do acolhimento, muitas vezes, está prescrito que algumas religiões, junto às suas crenças, têm mais valor que outras.

Valéria nos provoca também a pensar na representação que circula do serviço de acolhimento como uma “grande família”, onde os adultos determinam o que pode ser bom e no que é importante as crianças e adolescentes acreditarem.Em geral, marca-se um Deus, aquele que os adultos acreditam, sem perguntarmos a eles se e qual é esse Deus que creem. Ela questiona se há a possibilidade de acreditarem em outros jeitos e outras místicas, além desse Deus que prevalece, reforçando a dificuldade do estado brasileiro, cristão, de assumir como religiosidades possíveis as de matriz africana, o que aparece também no percurso do acolhimento. Contrapõe, então, o papel dos serviços de acolhimento, que deve ser de proporcionar inclusão e cuidado, ao preconceito quanto às diferenças e aos diferentes que, muitas vezes, se observa.

 

Ela segue trazendo suas experiências e reflexões de quando assumiu a coordenação de um serviço de acolhimento em São Paulo. Conta a história de uma adolescente que tinha o desejo de frequentar o terreiro, espaço no qual se sentia bem, mas encontrou resistência na equipe da instituição para acompanhá-la, até que outros educadores aceitaram ir e participar dos rituais com ela.  Esse episódio acarretou em uma série de conversas sobre religião, religiosidades e fé entre os profissionais do serviço, e na criação do projeto “Expedições de mim”, com o intuito de ampliar a compreensão e o conhecimento de diferentes crenças a partir de encontros com sacerdotes de várias religiões e visitas a diferentes espaços pelos profissionais, crianças e adolescentes.  Estas vivências  proporcionaram muitos ganhos em termos de entendimento e acolhimento efetivo dos outros e de seus valores.

A especialista também enfatiza que, na área do acolhimento, precisamos estar firmes, no sentido de nosso propósito no processo de educação social com as crianças, adolescentes e famílias e, ao mesmo tempo, ser flexíveis, para saber que não sabemos, reconhecer que não conhecemos e expandir, buscando novos conhecimentos, inclusive com os meninos e meninas com os quais atuamos. Aborda que, se partirmos do princípio que não sabemos, e de que cabem outros saberes, histórias e movimentos dentro do acolhimento, acredita que é muito possível a inclusão, não só sobre religião, mas de muitos outros aspectos da vida, que facilitariam e tornariam o trabalho mais viável em termos de desenvolvimento de sujeitos.

Por fim, Valéria define a religião como uma forma de participação social, ao mesmo tempo que reforça como não há só um modo e as crianças, adolescentes e adultos precisam compreender e participar. Traz que não cabe aos educadores serem impositivos ou deterministas sobre o que se deve ser, caso contrário, podem desacelerar ou amputar as possibilidades de ser no mundo das crianças e adolescentes com os quais trabalham. Precisam, sim, atuar como experimentadores e questionadores acerca do que mais se tem no mundo e na vida, incluindo as várias possibilidades de religião e de religiosidades.

Luiz, ao retomar elementos da fala de Valéria, inicia colocando como, na legislação, não existe hoje religião oficial no país, mas a forma como o poder está estruturado nos leva a perceber que ele está na mão de determinados grupos religiosos, o que se materializa também na política. Para aprofundar essa ideia, ele organiza a sua reflexão apresentando elementos que contribuem para a compreensão da colonização como fundamento de uma sociedade desnivelada e excludente. Aborda como o Brasil é fundado a partir de um ato de violência, vindo do imperialismo europeu, movimento que surge na história com um ato simbólico de origem religiosa, marcado pela Primeira Missa. A religião surge sempre no conflito entre diferentes sociedades e, aqui, o cristianismo católico, tido como religião oficial, andava junto com o processo de escravidão dos indígenas. 

O especialista, em seguida, discute a união entre a Igreja e o Estado nesse período, disseminando uma educação religiosa e marcando um monarca coroado “em nome de Deus”, estrutura esta que ainda vigora no estado brasileiro, em alguma medida. E reforça como entender essa matriz é fundamental, já que é nela que reside, em parte, a exclusão que vivemos e onde encontramos a razão da violência que leva à desestruturação social, demandando, então, ações e serviços, como os de acolhimento.

Luiz passa, então, a apresentar aspectos que fundamentam as religiões, como as práticas terapêuticas, algo que ajuda as pessoas a “se enquadrarem”. Traz uma frase do antropólogo Clifford Geertz para conceituar religião como um “sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, permanentes e duradouras disposições e motivações nos seres humanos”. E aborda duas dimensões importantes postas na sociedade: quando a fé conforta e ajuda a produzir bem estar, chamamos, na Ciência da Religião, de coping positivo; já o coping negativo surge quando a religião não ajuda a estruturar a vida e leva ao mal estar, promovendo dor ao sujeito e exclusão social.

Ele também coloca como a fusão do Estado e da Igreja promoveu o surgimento de uma casta privilegiada e de muito sofrimento do povo, gerando um conflito social, que leva à Revolução Francesa e à separação entre o Estado e a Igreja. Isto dá origem ao movimento de laicidade, que determina que Deus passa a ser o do coração e não mais o do Estado: o poder religioso fica para a crença individual de cada um e, ao mesmo tempo, surge uma instância que pode explicar as relações de conhecimento desvinculadas da religião, a ciência. Esse  movimento pode fortalecer a possibilidade da diversidade religiosa ser de fato acolhida, ao privilegiar todas as matrizes de fé. Luiz finaliza retomando o percurso da reflexão que queria promover nessa oficina e pontuando como o impacto da religião na constituição das pessoas é muito pouco discutido, inclusive na formação acadêmica, o que contribui para aprofundar problemas sérios que podemos ver no estado brasileiro.

Na segunda parte do encontro, os participantes foram convidados a trazer perguntas e considerações acerca do tema, com base em suas experiências na área do acolhimento. Algumas questões que surgiram foram: como lidar com a contradição entre o que está prescrito nas Orientações Técnicas sobre as liberdades de crenças e religiões nos serviços e as práticas de instituições fundadas por organizações religiosas que direcionam como as coisas devem acontecer; e como não deixar a religião entrar dentro da Política Pública do Acolhimento Familiar quando ocorre dentro de uma família. Os especialistas, nesse momento, dialogaram sobre como esses espaços de acolhimento atuam, muitas vezes, como reflexos do que acontece na sociedade, perpassados por uma história de fazer o bem ligado às Igrejas Católicas. E reforçaram a importância de ouvir as crianças e adolescentes sobre o que acham e pensam sobre as religiões e, também, de compreender e considerar quais caminhos que as famílias de origem fazem na perspectiva das religiosidades, para que não exista tantos atravessamentos.

 

 

 

OFICINA – COMO FALAR SOBRE HISTÓRIAS DIFÍCEIS

OFICINA – COMO FALAR SOBRE HISTÓRIAS DIFÍCEIS

No dia 27 de julho de 2022, o Instituto Fazendo História realizou a oficina online “Como falar sobre histórias difíceis”, que contou com a participação da especialista Valeria Tinoco, psicóloga, mestre e doutora pelo Programa de Psicologia Clínica da PUC-SP, autora de capítulos em livros e artigos científicos e representante da IAN Brasil (International Attachment Network).

Valéria inicia abordando como o trabalho na área do acolhimento fundamenta-se a partir de temas difíceis, sendo que ele começa quando algo dá errado, em alguma medida. Coloca como uma grande pergunta: como lidar com temas que geram em nós, e imaginamos que também vão gerar nas crianças, emoções muito complexas, normalmente associadas ao sofrimento? Ela traz que, quando poupamos as crianças dessas conversas, fazemos com as melhores das intenções, para que não enfrentem mais dificuldades, e que a proposta da oficina é conversar sobre alguns temas para vermos a que conclusão chegamos.

A especialista apresenta, então, uma história que faz parte do livro “Meu filho Pato”, organizado pelo Ilan Brenman e apoiado pelo Instituto Quatro Estações. O conto se chama “Pensamentos da bexiga murcha”, de Indigo, e trata de temas difíceis, como envelhecimento, morte e medo, de uma forma possível e leve, sem negar essas questões desafiadoras e sem fazer uso de formas distorcidas ou metáforas para poder enfrentá-las. A partir disso, ela salienta que, para abordar o assunto da oficina, gostaria de fazê-lo por meio de três eixos: 1) os temas difíceis em si; 2) a partir da perspectiva da criança ou do adolescente; 3) falar sobre o adulto que conversa com a criança.

Valéria, iniciando pelo terceiro eixo, colocando que esse tipo de conversa com as crianças requer disponibilidade da nossa parte: precisamos estar disponíveis emocionalmente, ter tempo e espaço em nosso entorno. Traz que questões, como Eu aguento?, Tenho tempo?, Estou preparada para falar sobre isso?, precisam estar em nosso radar, indicando o que devemos nos atentar para viabilizarmos estas conversas, seja cuidando de nossas próprias dores, buscando ajuda ou nos informando sobre aquilo que não temos ainda muito repertório para lidar. Reforça que quando evitamos certos assuntos visamos proteger a criança, mas será que não queremos também nos proteger? Esses temas podem gerar também nos adultos sentimentos como tristeza, medo e vergonha, associados à forma como foram criados, passando por situações onde não se podia conversar ou suas necessidades não eram reconhecidas.

Traz, então, que não é o fato de conversarmos sobre temas difíceis o responsável pelas emoções dolorosas - estas têm origem na notícia em si, que está além do que o adulto, seu portador, pode controlar. Quando não falamos de determinado assunto, não permitindo que a criança ou o adolescente conheça dados de sua história, estamos negando-lhe a oportunidade de elaborar aquela experiência. O acúmulo de vivências não elaboradas vai impactar enormemente em sua saúde mental e em seu desenvolvimento, principalmente no que se refere à formação de vínculos. Coloca como questão: como essa criança ou esse adolescente vai se vincular e confiar em alguém se vive cheio de mistérios e lacunas, e se há partes de sua história que não consegue entender? Ela enfatiza que cabe aos Serviços de Acolhimento trabalhar para preencher essas lacunas, dizendo às crianças e aos adolescentes que, apesar de difíceis, eles podem dar conta de caminhar com a sua própria história. E que, quando falamos, os preparamos não apenas para lidar com a situação daquele momento, mas também para enfrentar outros acontecimentos que necessariamente vão passar e que lhes dizem respeito.

Em seguida, a especialista apresenta elementos para pensarmos acerca dos temas difíceis em si e como estes nos despertam sentimentos que nos deixam vulneráveis, e tendemos a evitá-los. Além disso, o desconhecimento do tema e o tabu que permeia o falar de certos assuntos e que percorre gerações podem gerar mais desafios. Traz exemplos de sua experiência prática indicando uma tendência, de muitas vezes, as pessoas acreditarem que, para começar uma nova história, tudo o que diz respeito ao passado deve ficar para trás, incluindo as relações e vínculos temporários criados nas experiências de acolhimento. E reforça o quanto é importante, mesmo com o sofrimento gerado pelo rompimento inerente ao acolhimento, o desenvolvimento de vínculos de qualidade e o aprendizado de que é possível se vincular e viver uma experiência de afeto. O sofrimento em uma relação de vinculação é um sinal de saúde emocional e o problema aparece quando não sentimos nada a partir de um rompimento. Recorre à frase do especialista em luto Colin Parks, “a dor da perda é o custo do compromisso, perdemos só o que temos”, para dialogar acerca da ideia de que a única forma de não sofrer diante do afastamento é o não investimento na relação e em outros futuros possíveis para as crianças e adolescentes, o que sai do escopo do trabalho a ser desenvolvido em um Serviço de Acolhimento.

Em relação ao eixo da perspectiva da criança ou do adolescente, Valéria se refere a como não saber o que aconteceu é muito mais angustiante e torna a perda muito mais complexa de ser enfrentada, uma vez que, quando há segredos ou mistérios, ele não consegue construir uma nova forma de estar nesse mundo. Levanta como questão: o que podemos, como adultos, oferecer a essa criança ou a esse adolescente para facilitar o enfrentamento de uma situação desafiadora, a reconstrução de seu mundo e a confiança de que a vida vale a pena de ser vivida? Salienta que, certamente, a resposta não é o silêncio, o qual caminha junto com a ideia de que aquilo que vivencia não é importante.

No final de sua apresentação, a especialista expõe os fatores que considera que dificultam ainda mais a vivência de experiências difíceis pela criança ou pelo adolescente: a falta de informação sobre o que aconteceu; não ter alguém em quem confiar para poder perguntar e pedir ajuda; não ter suas necessidades reconhecidas e não poder expressar o que se sente; um entorno instável e inseguro; e a exposição contínua a outros estresses. Valéria ainda apresenta mais dois recursos que podem contribuir para a instrumentalização para o trabalho com os temas difíceis. Primeiro, traz a técnica “O mundo de...”, espaço para que se coloque todos os elementos da história de uma criança ou adolescente, concretizando qual ela é e fortalecendo a ideia de que ele é capaz de enfrentar aquilo que está em seu mundo, encontrando, assim, uma sensação de potência. Em seguida, oferece uma animação, baseada no livro “O dia em que o passarinho não cantou”.

Por fim, foi aberto um espaço para que os participantes da oficina trouxessem perguntas e considerações sobre o que foi abordado, associando às experiências na área do acolhimento. Algumas questões foram levantadas, relacionadas às práticas de não vinculação e de não poder chorar como ainda frequentes e aos comportamentos de resistência apresentados por uma criança durante o percurso de adoção. Valéria aproveita para caracterizar o luto como um processo adaptativo a uma perda significativa e, como tal, normal e esperado. E fortalece o papel dos profissionais da área de acolhimento no lugar de compreender e oferecer conforto, a partir da experiência do outro.

Assista o vídeo com a oficina completa: https://youtu.be/JRSd5s1TT6E

Entenda a participação do Instituto Fazendo História na atualização do Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC)

Entenda a participação do Instituto Fazendo História na atualização do Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC)

Durante muitos anos o Instituto se focou no trabalho direto com crianças e adolescentes que possuem relações familiares e comunitárias fragilizadas ou rompidas. Essa atuação nos possibilitou um acúmulo de conhecimento e experiência em relação à política de acolhimento no Brasil.

Consideramos essencial trabalhar diretamente com os meninos e meninas. Investimos na formação dos profissionais do sistema de garantia de direitos e possuímos inúmeras estratégias de formação, supervisão e qualificação das equipes dos serviços de acolhimento. Tudo isso tem um enorme valor, mas não é suficiente.

Em nosso trabalho enfrentamos diversos desafios que parecem intransponíveis e em relação aos quais éramos bastante impotentes: pouco investimento na ampliação do serviço de famílias acolhedoras; insuficiência ou fragilidade de políticas públicas para os jovens que completam 18 anos dentro de um serviço de acolhimento; pouco incentivo para a qualificação continuada dos profissionais do sistema de garantia de direitos; ameaças legislativas ao ECA; retrocessos nos procedimentos de adoção que ferem os direitos das famílias de origem; orçamento insuficiente para a assistência social.

Por esses motivos, começamos a notar que era preciso ir além. Olhar para as políticas públicas que afetam diretamente o direito à convivência familiar e comunitária entrou na agenda do Instituto em 2018. Sabemos da importância de nossos programas, da mobilização de voluntários, do valor de formações e publicações sobre o tema, mas acreditamos que a área de Advocacy dentro do Instituto é necessária para combater problemas de ordem macro política que impactam fortemente a vida de inúmeras crianças, adolescentes e famílias com as quais trabalhamos.

Uma das atividades mais valiosas da equipe de Advocacy do IFH nesse momento é a participação no processo de atualização do Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária.

Entenda o que é o Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária e os motivos que o tornam tão importante

O nome completo do Plano é “Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária” e sua sigla é PNCFC. Ele é um conjunto de estratégias, objetivos e diretrizes que orientam a execução das políticas públicas do Brasil relacionadas à garantia do direito à convivência familiar e comunitária. Por ser decenal, ultrapassa diferentes gestões de governo e impede a descontinuidade das políticas públicas a cada mudança político-partidária. É um planejamento de médio prazo que orientará todas as ações na área da convivência familiar e comunitária no país, exigindo que cada Estado, o Distrito Federal e Municípios elaborem seu respectivo plano em consonância com o PNCFC.

A primeira versão do Plano foi publicada em 2006, através de uma Resolução Conjunta do CONANDA e do CNAS (Conselho Nacional de Assistência Social) - Resolução CNAS/CONANDA No 1/2006, de 13 de dezembro de 2006. O Plano foi resultado de um processo participativo de elaboração conjunta, envolvendo representantes de todos os poderes e esferas de governo, da sociedade civil organizada e de organismos internacionais, os quais compuseram a Comissão Intersetorial que elaborou os subsídios apresentados ao CONANDA e ao CNAS.

O Plano foi um marco nas políticas públicas no Brasil, ao romper com a cultura da institucionalização de crianças e adolescentes e ao fortalecer o paradigma da proteção integral e da preservação dos vínculos familiares e comunitários preconizados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. A partir dele, as crianças e os adolescentes passaram a ser vistos de forma indissociável de seu contexto familiar e comunitário. 

As estratégias, objetivos e diretrizes da primeira versão do Plano estavam fundamentados primordialmente na prevenção ao rompimento dos vínculos familiares, na qualificação do atendimento dos serviços de acolhimento e no investimento para o retorno ao convívio com a família de origem. Somente se esgotadas todas as possibilidades para essas ações, o Plano previa o encaminhamento para família substituta, mediante procedimentos legais que garantissem a defesa do superior interesse da criança e do adolescente. 

O Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária representou um importante instrumento para a mobilização nacional e suas diretrizes se transformaram em ações concretas que permitiram ao Brasil avançar na garantia do direito fundamental das crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária.  

Qual foi a contribuição do IFH na atualização do Plano?

Quando terminou o período de 10 anos de execução da primeira versão do Plano, teve início um processo de avaliação para identificar os resultados alcançados (o que mais avançou, o que menos avançou, o que ainda precisa ser feito), para subsidiar a atualização de uma nova versão do Plano, para alinhar a nova versão com as normativas e legislações posteriores à primeira publicação, para incorporar questões do contexto atual e para levar os resultados da execução do Plano ao CONANDA e ao CNAS. Esse processo de avaliação contou com a participação de diversos atores: trabalhadores de serviços de acolhimento e do Sistema de Justiça, membros do executivo, grupos de apoio à adoção e jovens egressos de serviços de acolhimento. O IFH participou dessa etapa de avaliação organizando e realizando as oficinas de escuta dos jovens, que resultaram na elaboração e publicação da pesquisa “Minha Vida Fora Dali”. 

A partir dos resultados da avaliação, teve início o processo de atualização do Plano em maio de 2022. A primeira etapa dessa atualização é a realização de 16 oficinas que vêm reunindo semanalmente 30 participantes de diversos ministérios do governo federal, de organizações da sociedade civil, do Sistema de Justiça, pesquisadores e especialistas no tema da convivência familiar e comunitária. O IFH tem participado ativamente dessas oficinas representando a Coalizão pelo Acolhimento em Família Acolhedora. 

Após a finalização deste ciclo de oficinas, em setembro de 2022, os insumos e contribuições dos participantes serão sistematizados e submetidos ao CONANDA e ao CNAS para que o texto seja aprimorado pelos Conselhos, quando o IFH terá novamente oportunidade de contribuir com o Plano enquanto conselheiro suplente. Em seguida, cada Conselho colocará a nova versão do Plano em consulta pública para que outros membros da sociedade, entidades, atores do judiciário possam fazer suas contribuições. Por fim, a redação final do Plano será votada e aprovada por esses conselhos. 

Participar de momento histórico tão importante, talvez comparável ao período de união de esforços e participação social em que o Plano teve sua primeira formulação, nos traz um imenso senso de responsabilidade. Estamos honrados e orgulhosos por fazer parte da formulação de políticas públicas que contribuirão ainda mais para a efetivação do direito à convivência familiar e comunitária das crianças e adolescentes do Brasil. 

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OFICINA – SEXUALIDADE E DESENVOLVIMENTO

OFICINA – SEXUALIDADE E DESENVOLVIMENTO

No dia 14 de junho de 2022, o Instituto Fazendo História realizou a oficina online “Sexualidade e Desenvolvimento”, que contou com a participação das especialistas Camila Guastaferro, psicóloga, mestre em Ciências pelo Programa de Educação e Saúde na Infância e Adolescência (UNIFESP) e diretora científica do Instituto Kaplan, e  Carla Veríssimo, psicóloga, psicanalista, mestre em psicologia social pela PUC/SP e que trabalha com serviços de acolhimento desde 1998,  como técnica, coordenadora e analista institucional.

Camila inicia sua apresentação trazendo que, quando pensamos em sexualidade, falamos de um aspecto central do ser humano, de uma energia que motiva para a vida e que se conecta a como nos sentimos, percebemos e a como nosso corpo reage e sente prazer. Marca uma diferença no entendimento apenas como um fator biológico, ampliando para algo que começa a se inscrever na nossa existência conforme nos constituímos como sujeito e formamos os primeiros vínculos, envolvendo nossos pensamentos, fantasias, desejos e crenças. Aborda, assim, como os conceitos que rodeiam a compreensão do que é sexualidade vão se transformando, já que são históricos e culturais, e que ela participa de formas diferentes em cada fase de nossa vida.

A partir daí, Camila traça um percurso do desenvolvimento da sexualidade, desde a primeira infância e abrangendo como ela vai permeando de diferentes formas nossas experiências no mundo e as mudanças que vamos passando. Traz que, ao contrário do senso comum, que remete à relação sexual e à masturbação, a sexualidade começa quando nascemos e ainda somos completamente dependentes do outro, passando a nos relacionar com o nosso corpo e a capturar as sensações que o mundo nos promove. Nesse período, de 0 a 1 ano, nossas experiências de prazer estão mais centradas na sobrevivência e localizadas na região oral, associadas a como vamos entendendo esse vínculo que vai se constituindo com nossos cuidadores, o qual pode contribuir, ou não, para construção de uma base de segurança e confiança em si e no outro.

Em seguida, a especialista coloca que, na fase de 1 a 2 anos, de uma relação de dependência total, a criança passa para uma posição de dependência relativa, quando entra o controle motor, ela começa a descobrir os limites corporais e a apontar e falar de seus desejos. Segue descobrindo o mundo a partir da sensorialidade e da experimentação, mas ampliam-se as formas de sentir prazer, relacionadas à incorporação das regras sociais, à descoberta do que é ela e o que é o outro e do que é reconhecido e o que é negado. Surge uma angústia relacionada à separação de suas figuras constantes, quando elas existem, e que depende de como ela pode transitar nos espaços de descobertas e de caminhar para sua autonomia.

Ao falar do período de 3 a 6 anos, Camila apresenta uma criança que já domina a fala, observa, expressa ideias e vai descobrindo diferentes sensações de prazer. É uma fase marcada pelo aumento da capacidade de realização, onde ela começa a conhecer os papéis sexuais e de gênero, as interdições e a ter curiosidade na exploração do corpo do outro. Surge também a culpa relacionada à sexualidade, quando percebe que se tocar uma certa região de seu corpo, se produz uma sensação gostosa (falamos aqui de manipulação, não ainda de masturbação, a qual se relaciona à adolescência e que envolve uma intenção erótica). A auto-permissão assume um lugar fundamental, como condição para que, em futuros encontros amorosos, as pessoas consigam se permitir e se apropriar de como o corpo sente prazer.

Dos 7 aos 10 anos, a especialista destaca uma maior capacidade para perceber o mundo, conhecendo-o e explorando-o, momento fundamental para o desenvolvimento da sexualidade e de inscrição de uma valorização de si, do que consegue fazer e de qual o seu papel nos grupos que faz parte. É quando se entra em contato com como o corpo funciona e amplia-se sua curiosidade, sendo muito importante acompanhar a criança, a partir das informações que ela traz, do que sabe e até onde vai. Reforça como uma sexualidade cheia de tabus pode impedir que ela se aproprie de si mesma e tenha segurança em poder sentir prazer com seu corpo, de acordo com sua faixa etária.

Por fim, Camila apresenta a fase da adolescência, abrangendo como a puberdade faz parte desse período, associada às mudanças no corpo, que atinge a capacidade reprodutiva e sexual. É quando o adolescente vai absorvendo todas as transformações que vão ocorrendo, permeadas por bastante sofrimento, reconhecendo como se apropria e se há identificação ou estranhamento em relação a seu corpo. Percebe mudanças em suas relações, aparecem novos sentimentos e sensações e ampliam-se as possibilidades de questionar e entrar em contato com uma multiplicidade de prazeres, interesses e comportamentos no exercício de sua sexualidade. Ela finaliza enfatizando como é essencial um espaço no qual o adolescente possa falar desse corpo, de como o sente e o percebe, incorporando conceitos de liberdade e singularidades.

Carla, por sua vez, se utiliza da fala de Camila como pano de fundo, para abordar aspectos acerca da atuação dos profissionais nos serviços de acolhimento no que diz respeito à sexualidade. Inicia trazendo como é complexo esse trabalho, no qual todos devem se enxergar como educadores, e chama para a responsabilidade de garantir o caráter protetivo e de promoção dos direitos das crianças e dos adolescentes. Destaca como fundamental a consideração sobre qual o espaço social que estamos inseridos e o que ele traz de história, que reproduzimos em nossas práticas institucionais.

A segunda especialista reforça a importância do papel do educador como um influenciador na vida dessas crianças, adolescentes e famílias em situação de vulnerabilidade e apresenta alguns dispositivos centrais para nortear essa prática. O primeiro deles é o Projeto Político Pedagógico do Serviço (PPP), o qual precisa ser cuidadosamente construído e revisado, para se pensar quais são os princípios e diretrizes que conduzirão o trabalho e como temas como identidade, individualidade e diversidade cultural e religiosa serão tratados. Ela indica que é por meio desse projeto, que deve incluir o olhar de todos os atores envolvidos no serviço, que compreenderemos se há e qual a abertura para se conversar a respeito da sexualidade, como olhar para cada criança e adolescente e, a partir daí, qual a responsabilidade, enquanto educador, nesse percurso.

Carla também discorre acerca do Plano Individual de Atendimento (PIA), como um instrumento que permite pensar no projeto que aquele serviço tem para desenvolver com cada uma das crianças e adolescentes. Aborda como, para sua elaboração, se torna essencial uma conversa prévia entre toda a equipe, considerando diferentes olhares e informações sobre aquela criança ou adolescente e, nessa perspectiva, a participação dos educadores é estratégica, já que são eles que ficam mais tempo com o grupo, cuidando, escutando as angústias e lidando com os conflitos que surgem, de forma mais imediata. Atenta para a importância da inclusão das famílias, assim como de outras instituições e da própria comunidade, para que se compreenda sua realidade, qual a sua história de vida e a razão da medida de acolhimento.

A partir daí, Carla direciona ao que isso tem a ver com a temática da sexualidade. Aponta como é importante compreender o desenvolvimento individual e como esse aspecto se opera em cada um, assim como quais foram os estímulos que essa criança recebeu e qual é a ideia de sexualidade que a permeia. Em relação às situações delicadas que podem surgir nos serviços, traz como é importante os espaços de troca e de interlocução com toda a equipe e questiona até onde vão as possibilidades e limites de atuação. Apresenta uma situação de erotização precoce, quando ocorre uma estimulação inadequada, antecedendo a fase de desenvolvimento que a criança está, para pensarmos nos desafios que se impõe sobre como entender o caso e agir. Outra situação que surge é de quando há um interesse de um adolescente por um educador: como cuidar para que não atuemos apenas de modo repressivo? Como consideramos o momento da adolescência e como é preciso dar espaço para que tragam questões que os angustiam e para que desenvolvam sua sexualidade de modo tranquilo?

Ela também atenta para o desafio de, nos Serviços de acolhimento, encarar os desconfortos frente às questões que “borbulham”, principalmente com os adolescentes, pensando em como se conduz e qual o reflexo dessas ações para o futuro deles. Trabalhamos com silenciamentos, onde tudo é proibido e nada pode ser dito? Como lidar com o segredo que nos contam? E com atitudes que são permitidas nas casas de suas famílias, mas nos serviços não? Como é tratada a diferença de gênero? E a pouca privacidade que se tem dentro do serviço?  Coloca como todos esses aspectos são bastante complicados e precisam de espaço para serem tratados de forma humanizada, para que não se caia em uma exigência de rigor na conduta, além do que pode ser posto em prática por um sujeito saudável.

Carla finaliza problematizando o lugar desse educador, que precisa se abrir para, de fato, ser tocado e rever suas próprias posições, princípios e o que pode ou não ser permitido, a partir do que se apresenta no contato com o outro. Sem essa abertura, não conseguimos oferecer condições que contribuam para o desenvolvimento intelectual, emocional e social dessas crianças e adolescentes, para que sejam capazes de enfrentar o mundo.

Por fim, foi aberto um diálogo com os participantes, para que trouxessem perguntas e considerações sobre o que foi abordado, associando às suas experiências na área do acolhimento. Surgiram alguns questionamentos acerca de como conversar sobre o tema da sexualidade e escolher os materiais a serem utilizados com as crianças e adolescentes, de acordo com sua idade. Nesse momento, as especialistas destacam a importância de reconhecer a capacidade cognitiva de cada um e como é possível trabalhar sobre um mesmo aspecto, como é o caso do consentimento, de formas diferentes, respeitando cada fase e incluindo mais repertórios à medida que eles se desenvolvem. Abordam também como fundamental trabalhar processualmente, não interditando, mas trazendo limites e regras que indiquem a relação com a sexualidade como algo privado, e nomeando diferenças, que possibilitem às crianças e aos adolescentes estabelecer um lugar de segurança em relação ao seu corpo.

A oficina está disponível na íntegra no canal do YouTube do Instituto Fazendo História:

 

 

Oficina Questões Étnicos-Raciais: como educar para uma sociedade mais igualitária e sem preconceitos?

Oficina Questões Étnicos-Raciais: como educar para uma sociedade mais igualitária e sem preconceitos?

No dia 29 de Junho de 2022 o Instituto Fazendo História realizou a oficina presencial com o tema: “Questões Étnicos-Raciais: como educar para uma sociedade mais igualitária e sem preconceitos? ”, que contou com a participação dos especialistas: Paulo Bueno, psicanalista, psicólogo (PUC-SP), mestre e doutor em Psicologia Social (PUC-SP),  supervisor clínico, docente do Instituto Gerar de Psicanálise e pesquisador do Núcleo Psicanálise e Sociedade (PUC-SP), integrou o Grupo Balaio de Acompanhamento Terapêutico (Sedes Sapientae) e, Carla França, psicóloga com atuação clínica e social, especialista em Saúde da Família e psicanalista em formação pelo Núcleo de Pesquisas Psicanalíticas (NPP). Recentemente foi colaboradora do Instituto Fazendo História no programa de Formação. Atualmente é colaboradora do Instituto AMMA Psique e Negritude, possuindo como eixo de trabalho a Psicologia e as relações Étnico-Raciais.

Paulo inicia sua fala perguntando: “O que é uma criança?” e fez derivar dela outras perguntas: “O que uma criança faz?”, “Onde está essa criança?”. Contextualiza que em nossa sociedade o que difere uma criança de outros sujeitos são as atividades que ela desenvolve, e uma dessas atividades é o brincar. O brinquedo é uma tripla ponte, que vai permitir a ponte entre o instante imediato e o futuro, uma ponte que vai permitir uma ligação entre a realidade e o mundo imaginário ou da fantasia, e por fim, essa ponte liga a criança ao outro, seja este outro uma criança ou um adulto.

Quais são as possibilidades para que essa criança possa embarcar no mundo das fantasias e se desligar, diante das durezas e das cruezas do momento imediato, e principalmente, quais são as condições que vão possibilitar a ligação da criança com o outro? O especialista cita uma hipótese de que a colonização no Brasil e no Ocidente, nesse mundo que é determinado colonialmente existe um projeto e que visa atualizar a travessia do Atlântico, citando que os navios negreiros faziam esse transporte do continente africano para o continente americano, e as condições dessas travessias eram as piores possíveis, de completa desumanização, sem a mínima garantia de cuidados sanitários. Os africanos eram amontoados e muitos morriam pelo caminho. As crianças recebiam os mesmos tratamentos que os adultos, sendo que não existia distinção entre ser criança e ser adulto. Um dos braços do projeto colonial que vivemos tende a reatualizar esse tipo de travessia. Então, para que se faça uma travessia para o futuro e em direção ao outro, submete-se às piores condições possíveis. Portanto, a pergunta que nos foi colocada na perspectiva da Descolonização é: “Como fazer para descolonizar essa ponte? ” E essas perguntas vão nos direcionando para alguma resposta que contribua para pensar em alternativas possíveis

Segundo Paulo, uma possibilidade é pensarmos nos brinquedos que nos rodeiam (nos consultórios, nas UBS, nas escolas, na brinquedoteca, nos CAPS, nos Serviços de Acolhimento). Qual a raça dessas bonecas e bonecos que estão presentes nessas instituições? Pensar nessa resposta é compreender que se em sua maioria essas bonecas e bonecos são brancos. Estamos assim transmitindo, quando não há uma diversidade nesses brinquedos, quando não há uma boneca preta, que aquele ou aquela que é digna desses cuidados são justamente aqueles que exclusivamente fazem parte de um determinado grupo racial. Com relação aos personagens de livros, nós fazemos uma avaliação ou uma análise a partir do conjunto de obras, de literatura infantil e juvenil. Quais são os livros existentes em nossas organizações? Não basta ter um livro, quais as possibilidades de oferta? Todas essas são questões educacionais, técnicas, de gestão, que vão nos ajudar a pensar na descolonização dessa ponte.

Se o brinquedo é uma ponte entre a criança e o outro, o que é transmitido quando todos os modelos, seja na literatura, seja nos livros, seja na natureza das brincadeiras, onde todos os modelos são brancos? Como se dá uma brincadeira mesmo sem o suporte do brinquedo, seja em uma brincadeira de faz de conta, como se dá a distribuição de gênero e raça?

Paulo cita a hierarquização das profissões, e cabe ao adulto observar nas brincadeiras o porquê dos meninos serem o médico e as meninas estarem no lugar de assistente, cabe a nós observar o porquê o menino negro não é o príncipe e a menina negra não é a princesa, qual o lugar que cada um ocupa, qual o lugar que lhes é reservado? Por que eles não podem fazer uma circulação de papéis? Importante que o adulto não direcione, mas intervenha em alguns momentos. Neste momento, fazemos escolhas técnicas e escolhas políticas e para que essas escolhas aconteçam, há que se ter um olhar muito apurado, levantar essas interrogações continuamente quando observa-se tais brincadeiras. Não adianta olhar para a criança quando ela está aprontando, quando ela está barbarizando na escola, mas olhar para o contexto todo. Por que é destinado para o negro o papel de vilão? Como intervimos para que circule esse papel? Como não cristalizar esses papéis fazendo o recorte de raça e gênero? Pensando inclusive nessa questão de gênero, porque o menino não pode ser a princesa? Esse foi o primeiro ponto: “o que faz uma criança? ”

O segundo ponto é: “Onde está uma criança?” Pensando na sociedade ocidental, em nosso imaginário o lugar da criança é a escola. O ECA vai colocar como um direito, a criança estar na escola, uma obrigação dos guardiões e do Estado, oferecer e garantir a permanência da criança na escola durante os anos de sua formação e desenvolvimento.

Paulo cita alguns autores, fala da importância em referenciar quem nos inspira, cita a tese do Frantz Fanon, psiquiatra radicado na Argélia - “que uma criança negra típica, em uma família negra típica, é uma criança atípica em seu primeiro contato social”. Esse é o contato social mais sistemático que uma criança tem, a escola. Então, por que há essa desproporção entre a família e a sociedade? Porque que essa criança, onde tudo vai bem dentro de casa, começa a se sentir completamente deslocada em um mundo social que lhe é apresentado a partir da escola? Interessante como tal fato também ocorre em casos de adoção: crianças negras sendo adotadas por famílias brancas que conseguem fornecer os cuidados necessários, carinho, cuidado, amor e valorização dessa criança negra, mas o choque é o mesmo quando ele encontra um social mais amplo. Todas as características que são valorizadas da porta para dentro são motivo de exclusão da porta para fora.

O especialista também cita outra autora: Neusa Santos Souza, psicanalista e psiquiatra baiana, que afirma que a criança já está em uma família atípica (família negra), que carrega e transmite as marcas do racismo. Essa desproporção entre família e sociedade se mantém, e se torna ainda mais complexo, pois no interior dessa família já há uma desproporção no que se refere a comparação do que se idealiza como uma família na nossa sociedade e o que essa família representa efetivamente.

Da mesma forma que essa criança negra é uma não criança, essa família negra é uma não família. Essa sutileza que a autora traz é muito importante quando se trabalha com famílias na ponta, como no caso dos serviços de acolhimento, seja ele institucional ou familiar. Estamos falando de sucessivos fracassos por parte do Estado. Trabalhamos com o ponto mais frágil de uma cadeia de acontecimentos e fracassos. Essa ponta mais frágil é a criança e sua família e entendermos que essa inadequação está colocada por base, é absolutamente fundamental.

Paulo traz uma reflexão sobre um tema bastante discutido ultimamente que é a noção de abandono, ou seja, todo ato de entrega de uma criança é interpretado como abandono e como isso pode ser bastante problemático. Ele traz um exemplo do Rei Salomão onde em uma situação há uma criança, duas mulheres que se dizem mãe dessa criança, e a decisão que o rei toma é dividir a criança e dar metade para cada mulher. Uma das mulheres se pronuncia, abre mão do filho para que o rei não faça isso e ele entende que, por tal ato, ela seria a mãe, porque só uma mãe entregaria o próprio filho para outra pessoa, a fim de poupar sua vida. A entrega da criança muitas vezes é o ato de maternidade. Quando você vê seu filho ou sua filha prestes a ser cortado de alguma maneira, quando não cortado literalmente - pode ser uma ferida subjetiva muito profunda, a fome, a pobreza, e o quanto ainda é comum a “adoção à brasileira” (ilegal), a família pobre que entrega seu filho para uma família rica, o que significa essa entrega?

Neste sentido, não podemos interpretar toda a entrega de uma criança como abandono, pelo contrário, este é o gesto possível naquele momento para aquela mãe, para aquela família que logo no início de “ser” família, é interpretada, julgada como uma família inadequada. É inadequada por não possuir um emprego estável, e o emprego que possuem não é socialmente valorizado. Cita o livro da Carolina Maria de Jesus, pois refere situações como esta, relato de uma mulher que tem uma família bastante inadequada, mas que luta com todas as suas forças com muito amor para dar sustentação a essa família. O quanto que a mulher negra fica à frente da família, e vai mostrando a luta diária dela contra a fome, e como podemos pensar essa família como o resultado de um abandono sistemático, um abandono que tem o atravessamento do racismo.

Paulo cita uma pesquisa da Fabiana de Oliveira e Anete Abramowicz, onde se baseiam em um conceito de um historiador que vai determinar que o início da infância no ocidente se dá pelo sentimento particular que ele nomeou de “paparicação”, no sentido de paparicar, mimar, pegar no colo, dar beijo, ver essa criança como um ser especial, algo que não acontecia antes do século XVII. Nesta pesquisa de campo, elas observaram que existe uma diferenciação na distribuição de afeto entre crianças brancas e negras. As crianças brancas são mais paparicadas. Quais são as marcas que ficam? Marcas constitutivas e que chegam na vida adulta. Então, a pergunta que fica é,  se o lugar da criança é a escola, precisamos reafirmar que aquele que está em situação de acolhimento institucional ou familiar, também é uma criança. E a tendência daquele que recebe essa marca de “o acolhido”, mesmo dentro das organizações cotidianas da escola, é que seja visto como a “não criança”, e a não criança pode ser substituída por vários nomes – “baderneiro”, “abandonado”, “o órfão”. Existem ofensas diretas de crianças e adolescentes que apontam esses pronomes.

Paulo questiona - e nos SAICA’s, como se dá a distribuição de cuidados e afetos? Quem é pego no colo e quem não é? Quem é contido no sentido de dar continência ao choro e quem não é? Quem é elogiado? Quem é a princesa?

Ademais, a última pergunta: o que é uma criança? Podemos definir criança como uma categoria socialmente construída para nomear os anos iniciais do desenvolvimento do ser humano, e nela se encontra uma primeira barreira. Desde que inventou-se o termo, a partir do momento que os europeus chegam em outro continentes e não encontram ali “espelhos”, eles inventam a raça não apenas para nomear uma diferença, mas para hierarquizar essas diferenças, dentro de um projeto político de dominação que veio dar origem posteriormente ao capitalismo.

Quando se inventa o nome negro, ele é inventando como a negação do humano. E nesta definição do que é criança, excluímos as crianças negras, pois o que se vê ainda é que os negros estão fora do campo do humano para muitas representações e muitos lugares. E se negros não são humanos, os filhos de negros também não são humanos. Paulo cita uma cantiga na qual ele conheceu na vida adulta, que ele nomeia como catastrófica:

“plantei uma sementinha no meu quintal e nasceu uma negrinha de avental,

dança neguinha,

eu não sei dançar, 

pega o chicote que ela dança já.”

 

É uma cantiga transmitida em roda por muitos adultos para grupos de crianças brancas e negras até os dias de hoje, e não é algo que se encontra nos livros de história, mas no Youtube existem várias, e é da ordem do horror a questão da desumanização. Cita uma educadora importante  Benilda Brito, precisamos reafirmar a todo momento quando pensamos no campo de resolução de conflitos entre as crianças, que não podemos traduzir todos os conflitos como bullying. Destaca que há uma diferença entre o racismo e o bullying, sendo que o bullying tende a inferiorização do outro, enquanto o racismo mais radicalmente tende a desumanização das crianças negras. O racismo é transgeracional, se eu sou negro e fui chamado de macaco, meus pais foram, meus avós foram, e meu filho se ainda não foi, será, e o filho dele também, diferente do bullying. O especialista traz um caso, e encerra dizendo que é preciso produzir infâncias negras, que perderam o direito de brincar, e uma de nossas lutas é a defesa inegociável do direito à infância de nossas crianças negras.

 

Em seguida, Carla dá sequência trazendo a proposta de uma imersão na qual ela nomeou de “poética” sócio-histórica, apresentando o vídeo da Conceição Evaristo  “Vozes Mulheres”, com o objetivo de fazer uma reflexão sobre as gerações, pois neste poema a autora vai falando sobre a avó, bisavó, da mãe, dela e da filha, e nos situa na história. Em sua apresentação Carla cita algumas autoras, tais como Carolina Maria de Jesus, traz alguns trechos do livro – Quarto de Despejo, e contextualiza a importância de entendermos que criança é essa, que família é essa, quais os arranjos possíveis para então chegarmos nas crianças e adolescentes que atendemos.

Carla também apresentou sua linha da vida e explanou sobre a importância de saber a história da instituição ao se iniciar um processo de formação. A especialista situa todos sobre alguns marcos históricos para se pensar o preto no Brasil, cita a Lei do ventre livre, 1871 - a criança estava livre, e os pais dessa criança estavam livres? A ideia que se tinha de família naquela época era possível pensar isso, neste processo escravizatório? Depois, temos a Lei Áurea 1888. Carla foi costurando a história de sua família com os marcos históricos no Brasil. E fala da importância das escritas de Carolina de Jesus a partir de seu livro, o que ela fala se vive, e os atendidos vão nos contando sobre uma realidade muito próximas, e quão fundamental é ter essa escritora, essa mulher preta para contar sua realidade, que é a realidade de muitos - ela é representante de muitos.

Carla destaca a importância de se colocar dentro do processo, porque lidamos com essa realidade o tempo todo, seja no campo privado ou no campo profissional, estamos dentro desse contexto sócio-histórico. O sujeito que eu atendo não está solto, ele pertence a um lugar, está inserido em um território, tem uma referência de família, ou seja, existe uma história que o antecede e que o sucede. Continuando, a especialista traz dados retirados do IPEA datado de 2003, sendo que 63% das crianças e adolescentes acolhidos no Brasil são negras, por isso é essencial falar sobre o tema das questões étnicos-raciais para os profissionais que atuam em acolhimento - não dá para olhar para essa criança sem considerar esses dados. Também menciona sobre os motivos de acolhimento, sendo eles: pobreza, abandono, violência doméstica/maus tratos, se faz importante saber quem é essa criança, como ela foi para o abrigo?

Carla continua explanando sobre o papel do educador, falando sobre o que significa ser educador, pensando a partir das Orientações Técnicas, documento que dá diretriz ao trabalho de um serviço de acolhimento e considera que todos os profissionais que atuam nos serviços são educadores. E para convocar os participantes para esta reflexão, ela trouxe alguns nomes que foram ou ainda são usados para o profissional educador, que são: pajens, monitores (pensando na perspectiva desse lugar de monitorar, vigiar, conter), atendentes, cuidadores, instrutores (um termo mais atualizado e tinha a função de instruir), orientadores (hoje ainda se usa muito esse termo), e educadores.

Pensando no sentido do processo, o trabalhador tem essa incumbência, e a palavra educador é o que mais se aproxima, ela dá norte, direciona e permite compreender a dinamicidade e a complexidade deste trabalho. Há ainda muitos atravessamentos devido a questão sócio-histórica: muitas vezes o profissional ainda está colado no papel de monitor, principalmente quando precisa manejar alguma situação de conflito na casa e ainda se pensa que aquele sujeito precisa ser punido ou que a polícia precisa ser chamada para fazer essa contenção. Assim contribui-se com uma visão que está ultrapassada e no dia a dia vai se confundindo, por isso, é preciso estar atento para não estar nesse lugar do monitor. Ser educador é ser um facilitador na vida das crianças e dos adolescentes para além da ideia de cuidador, é preciso estar junto e fazer junto com a criança e com o adolescente.

Carla traz trechos do PNCFC e das Orientações técnicas justamente para pensar o papel do educador como aquele que vai auxiliar as crianças e adolescentes a lidar com suas histórias de vida, destacando os avanços a partir dessas diretrizes. Quantos educadores, ao perceberem essas mudanças principalmente em relação às questões étnicos-raciais, se sentem com medo ou receosos em sair de uma lógica que reproduz racismo diariamente. Como vamos entrar em um embate sobre o tema se até 10 anos atrás essa era uma lógica de funcionamento muito bem estabelecida? Existe um desconforto do profissional que tem que lidar com tais demandas, há que se ter discernimento e implicação. Carla convoca com a seguinte pergunta: você já esmiuçou a sua linha do tempo ancestral?  

A especialista trouxe frases de autores como Bell Hooks, Paulo Freire e imagens que retratam propagandas de cervejas, produtos de beleza, exibindo mulheres pretas que são extremamente ofensivas e racistas, e que de alguma maneira são circuladas em rede nacional e nas mídias. Fala sobre o quanto esse tipo de anúncios e propagandas são extremamente preconceituosas e racistas, além de objetificar o corpo da mulher. É importante ter esse cuidado para não reproduzirmos essa ideia com as meninas, fazendo o recorte da mulher. Carla diz que se no serviço de acolhimento no qual você atua ainda não vivenciou nenhuma situação de racismo, se faz necessário trocar a lente.

Carla propõe que todos pensem em estratégias, inclusive olhar para o PPP da instituição para pensar uma lógica antirracista dentro dos serviços de acolhimento. Um primeiro ponto é reconhecer o racismo estrutural, em seguida a questão da branquitude, privilégios e meritocracia. Como  conversar com um adolescente baseado na meritocracia? Muito complexo, pois usando esse discurso o jovem não se sentirá escutado. É importante discutir o que são os privilégios, o resgate da memória e empoderamento, trazendo sentido para a história, contando sobre o que vieram antes.

Carla cita Carlos Eduardo Machado para pensar nas potências e no quanto o preto foi colocado em um lugar de não saber, de incapacidade de pensar. Esse autor traz a questão das tecnologias, geometria, métrica até para fazer as tranças - muitos usavam tranças para se localizar, pois nelas continham mapas. A representatividade e autoestima, são importantes porque as crianças pretas não são desejadas nos ambientes - como trazer figuras em que elas possam se reconhecer, contar a história que a antecede. Valorização da coletividade da cultura local, importante pensar no território quais são os meios de cultura local em  que as crianças e adolescentes possam ser inseridos:  bibliotecas, coletivos pretos, espaços em que eles possam circular e se ver de um jeito diferente, a partir de suas potências. Quem são os parceiros que podem contribuir com essas práticas dentro dos serviços? Escuta afetiva e olhar ampliado ouvir para além do dito, das palavras, o que é o desejo dessa criança, o que ela está querendo comunicar, ampliar as possibilidades de escuta. Muitas vezes a criança está trazendo questões que não somente delas, são da família e do território. Inquietude e abertura de outras possibilidades, pensando neste lugar do educador de convocação e provocação, permitir se olhar através do que está cristalizado em mim, me movimentar para quebrar preconceitos. Nutrir o cuidado com a comunicação, como cuidamos da forma como estamos nos expressando, como vamos nomeando e ajudando as crianças e adolescentes a ir nomeando o cabelo, a cor da pele. Existe uma diferenciação e é preciso falar sobre isso, perguntar como aquela criança quer se apresentar, os penteados que ela quer, o quanto essa criança e adolescente podem escolher como querem estar penteadas, pensar nos produtos. Tomar cuidado como me expresso: “cabelo ruim”, “moreninho”, educador como facilitador do processo.

implicação da sociedade, ou seja, não são só negros que precisam falar sobre racismo, precisamos saber dos efeitos que o racismo causa pensando de forma concreta e subjetiva, se faz necessária a implicação de todo mundo para que possa haver alguma mudança. E, por fim, ampliar o pensamento para uma perspectiva decolonial como olhamos o fenômeno de um jeito diferente, e há condições de subverter.

Por fim, Carla traz algumas sugestões de materiais de apoio, vídeo, filmes, música, livro. Antes do encerramento houve um momento de dramatização para que os participantes pudessem compartilhar e trocar algumas situações de racismo vivenciados nos serviços de acolhimentos, foi um momento de muita reflexão e de tensão diante de um tema tão complexo, porém necessário. Assim se deu a oficina neste dia.

Caso tenha interesse em assistir a oficina na íntegra, acesse.

 

 

 

Oficina "O papel do educador"

Oficina "O papel do educador"

No dia 17 de maio de 2022, o Instituto Fazendo História realizou a oficina online “O papel do educador”, que contou com a participação de Tião Rocha, antropólogo, educador popular, folclorista e idealizador e diretor-presidente do Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento (CPCD) e do Banco de Êxitos S/A – Solidariedade e Autonomia, ambos em Belo Horizonte/MG.

Tião inicia dizendo que esse encontro era muito mais do que uma palestra: seria um espaço de troca de confidências, desejos, sonhos e frustrações. Esperava, assim, que aquele dia, como dizia Guimarães Rosa, fosse uma “tarde barriguda”, um momento de acolhimento e de suporte, onde se pudesse pensar sobre coisas boas pelas quais vale a pena lutar.

Em seguida, Tião conta de sua trajetória de muitos anos como professor e de um dos “clarões” que teve há 40 anos, um lampejo de consciência tão forte que o fez mudar de rumo na vida: chegou na Universidade e decidiu que não queria mais ser professor, e sim educador. Para ele, enquanto o professor é aquele que ensina, o educador é aquele que aprende. E era exatamente o que buscava: sair do lugar da “ensinagem” para ir para a aprendizagem, quando rompe com a universidade para se tornar um aprendiz.

Foi nesse momento que ele criou a sua própria instituição, o CPCD, ao qual hoje se dedica integralmente e que reencaminhou o seu sentido de existir. Tião vai narrando uma série de causos e histórias marcantes em seu percurso, partindo da experiência de Curvelo (MG), “capital da literatura” de Guimarães Rosa e seu grande laboratório de aprendizagem, onde se junta com parte da comunidade, interessado em repensar as formas de educar.

Se perguntavam se era possível educar fora da escola, debaixo dos pés de manga, e, de início, tinham muito claro aquilo que não queriam mais que acontecesse com as crianças, os “não objetivos educacionais”, mas tinham dificuldade de projeção de futuro. Ele faz, então, uma crítica à nossa experiência educacional tradicional, a qual deveríamos desaprender, parando de reproduzir ideias que entendem as crianças como “páginas em branco prontas para escrever um belo livro”, que negam sua história de vida e sabedoria e atrelam o aprendizado a algo doloroso.

Tião conta dos erros e acertos em sua caminhada, criando estratégias para que as meninas e os meninos da região se sentissem pertencentes ao projeto, de modo que todas as propostas que traziam fossem incluídas e todos assuntos fossem transformados em coletivos. Nesse percurso, ampliaram-se os espaços educativos para diferentes lugares da comunidade. Os conteúdos englobavam todos os saberes, fazeres e quereres das crianças envolvidas e a forma de aprendizado se dava primordialmente por meio da roda, o que chamaram de Pedagogia da Roda: não havia “dono”, ela se movia a partir dos assuntos propostos e, assim, da construção de consensos.

Ao apresentar o que considera uma educação de qualidade, Tião enfatiza a necessidade do eu e do outro, como um processo de troca do que cada um tem, construindo-se algo novo, em conjunto. E que para formar bons educadores - o que já fez pelo mundo e em lugares inusitados, desde a periferia de São Paulo até Moçambique - é essencial todos se colocarem no lugar de aprendizes, movidos a perguntas. Na construção do projeto “Ser Criança”, experimentaram uma proposta na qual as meninas e meninos aprendiam tudo o que queriam, desejavam e precisavam brincando.

O investimento estava no prazer de aprender, transformando os conteúdos escolares em jogos e brinquedos, que eram inventados, partindo dos materiais descartáveis que encontravam na comunidade. A grande questão que se colocava era: de quantas maneiras diferentes e inovadoras eu posso usar um recurso? E assim, contemplar diferentes individualidades e diferentes objetivos educacionais, como a alfabetização e a construção de uma cidade educadora, para que ninguém ficasse de fora?

Nesse momento, Tião aborda aspectos fundamentais do trabalho de um educador, como a importância de se desenvolver um olhar individualizado para cada criança e adolescente, percebendo o tempo e o ritmo de cada um: toda criança aprende o que necessita, em um tempo que é dela e não do sistema. Em sua concepção, um bom educador é aquele que, em seu contexto profissional de ação, consegue fazer uma leitura tão densa, rica e significativa do que o outro sabe, faz e quer a ponto de diferenciar “piscadela de piscadela”, considerando aquilo que é microscópico e se manifesta em “pequenos nadas”. E que, assim, contribui para que esse processo se dê em um lugar de alegria, de prazer e de construção do novo. A oficina de cafuné, por exemplo, surgiu quando se identificou que não fazia parte da rotina de muitos adolescentes essa prática de carinho, inventando um espaço para se falar de afetos e cuidado um com o outro.

Nos últimos trinta minutos de encontro, abrimos para os participantes trazerem questões para a troca com Tião, quando se discutiu o lugar do educar dentro dos Serviços de Acolhimento e a importância de um olhar individualizado para cada uma das crianças e adolescentes, captando seus sinais, códigos, o universo que os rodeia e, assim, suas histórias como um todo. Tião levanta a ideia da cidade como educadora e acolhedora e, nessa perspectiva, como as crianças devem ser cuidadas por todos e responsabilidade de todos, “convocando a aldeia” e investindo nas potencialidades de cada um. Parafraseando Eduardo Galeano em “O livro dos Abraços”, ele traz que é quando o educador reconhece o “me ajuda a olhar” da criança e do adolescente e integra ao seu “me ensina o que você viu” que um diálogo de fato se estabelece e surge a possibilidade de um processo transformador.

A oficina finaliza com uma reflexão bem interessante sobre o educador como aquele que inventa sua forma de fazer, sendo mais que “um repassador das ideias dos outros”, e realizando o ainda não feito: aquele que olha o outro como um cidadão inteiro, que participa da construção do conhecimento. Ao dialogar com um educador que se apresenta, Tião parabeniza pelo trabalho que já é realizado nos Serviços de acolhimento, pela construção constante de cada profissional como educador, e ainda convida a ir além, quebrando paredes e convocando a rua, as comunidades para esse percurso de acolher e educar.

O conteúdo da oficina está integralmente disponível no canal do Instituto Fazendo História no YouTube.

IFH participa de elaboração de projeto de lei

IFH participa de elaboração de projeto de lei

ADVOCACY NO IFH E AÇÃO PARLAMENTAR

O Advocacy é processo de reivindicação de direitos com objetivo de influenciar a formulação e implementação de políticas públicas e alocação de recursos públicos. Essa prática de defesa e argumentação em favor de uma causa de interesse público pode ocorrer por meio de campanhas na mídia, promoção de eventos públicos, publicação de documentos, pesquisas e estudos, diálogo com parlamentares e membros do executivo. Nesse sentido, uma das atividades da área de Advocacy do Instituto Fazendo História é abrir canais de diálogo com deputados estaduais, federais e senadores para oferecer subsídios técnicos na formulação de PLs de qualidade que ampliem os direitos das crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária. Além disso, em parceria com outros atores, monitoramos projetos de lei relativos à nossa área de atuação para apoiar aqueles que possibilitarão avanços e impedir a aprovação dos que ferem direitos das crianças e adolescentes ou representam retrocessos legais.  

 

PROCESSO DE ELABORAÇÃO DO PL 299/2022 DA ALESP COM PARTICIPAÇÃO DO IFH

No mês de maio, o Instituto Fazendo História, junto a outros integrantes da Coalizão pelo Acolhimento em Família Acolhedora e do Movimento Nacional Pró Convivência Familiar e Comunitária, participou com enorme prazer e senso de responsabilidade da elaboração de um projeto de lei de autoria da deputada estadual Marina Helou.

O gabinete da deputada contou com especialistas e organizações da sociedade civil com conhecimento e experiência na política do acolhimento para elaborar um projeto de lei estadual que respeite o melhor interesse das crianças e adolescentes e as legislações já existentes. Esse diálogo entre a deputada e membros da sociedade civil respeitou a participação social na elaboração de políticas públicas, princípio fundamental da democracia.

Desse diálogo democrático e de genuína escuta de especialistas e profissionais que atuam há muitos anos na área da garantia do direito à convivência familiar e comunitária, elaborou-se um PL feito por muitas mãos que dispõe sobre o apoio do estado à implementação de serviços de acolhimento em família acolhedora. Se aprovado pelo plenário da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP) e sancionado pelo governador, essa lei fortalecerá políticas que já estão previstas em legislações federais, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e garantirá ao Estado de São Paulo um grande avanço na execução do seu papel em relação aos serviços regionalizados de acolhimento em família acolhedora!

 

DO QUE SE TRATA O  PL 299/2022 DA ALESP, DE AUTORIA DA DEPUTADA ESTADUAL MARINA HELOU

Este PL, por ser da esfera estadual, aborda a especificidade da competência do estado em relação ao serviço de acolhimento em Família Acolhedora: a oferta regionalizada desse serviço, que se destina a atender a população de municípios de pequeno porte que não possuam demanda suficiente que justifique a implementação de um serviço municipal. Serviços regionalizados asseguram o acolhimento da criança e/ou adolescente próximo à sua família e comunidade, evitando o seu encaminhamento para locais distantes de sua cidade de origem. Podem ser de execução direta do Estado (executado pelos órgãos e entidades da administração pública estadual), de execução indireta (executado pelo Estado mediante parceria com organizações da sociedade civil) ou de execução regionalizada em regime de cooperação com os municípios da área de abrangência.

Além de estabelecer parâmetros para a estrutura, implementação e funcionamento dos serviços regionalizados, o PL institui a duração do acolhimento familiar, que passa a ter as seguintes classificações: de emergência (apenas uma noite/dia ou final de semana), curta e média permanência (algumas semanas até 18 meses)  e de longa permanência (destinados a crianças com deficiência e adolescentes com chances remotas de reintegração à família de origem ou de adoção e, portanto, maior probabilidade de acolhimento por período maior a 18 meses). Em relação aos acolhimentos de longa duração para adolescentes com deficiência que dependam de cuidados, e que completem a maioridade, não haverá limite de idade para a permanência no acolhimento familiar. Tais definições são um avanço na garantia dos direitos à convivência familiar e comunitária para crianças e adolescentes com deficiência que não possam ser cuidadas por suas famílias de origem. Vale destacar ainda outro item de imenso valor no PL: crianças e adolescentes sujeitos ao acolhimento de longa permanência, destituídas ou não do poder familiar, poderão manter vínculo com a família de origem caso manifestem esse desejo e caso essa convivência favoreça seu desenvolvimento emocional. Essa ressalva garante aos meninos e meninas acolhidas a preservação de suas identidades, o acesso a informações sobre sua origem, a sensação de pertencimento, a troca de afeto e experiências com seus familiares.

O PL cria no Estado de São Paulo, o “Dia da Conscientização Sobre o Acolhimento Familiar”, data que será dedicada a ações educativas, informativas, de conscientização e mobilização sobre a importância do serviço de acolhimento familiar como política pública. Por fim, mas não menos importante, o PL estabelece que a Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social deve promover workshops e formação continuada da equipe técnica e das famílias acolhedoras sobre acolhimento familiar para aprimoramento constante do serviço.

 

PARA SABER MAIS: COMO FUNCIONA A ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE SÃO PAULO[1]

 

O Processo Legislativo é o conjunto de atos realizados pela Assembleia, visando a elaboração das leis de forma democrática, ordenados conforme as regras definidas em acordo pelas partes, expressas na Constituição e no Regimento Interno.

Como organizar a segurança em nosso Estado? Onde usar as verbas arrecadadas com os impostos? Quem deve pagar pelo uso da água?

Os cidadãos e os diversos grupos que compõem nossa sociedade, raramente, têm a mesma opinião ou os mesmos interesses sobre como resolver problemas comuns.

A solução desses conflitos, numa sociedade democrática, é feita através da construção de um acordo entre as diversas partes da sociedade, que se expressa na promulgação de normas garantindo direitos e estabelecendo deveres.

A construção desse acordo político, que permite a convivência civilizada na sociedade entre interesses contrários, acontece através dos debates e das votações dos Deputados que representam as posições dos cidadãos na Assembleia Legislativa. Esse debate constante, que transforma a proposta de uns em norma aceita por todos, é a essência da democracia representativa.

Para que ele seja democrático e transparente, deve ser feito com regras claras e aceitas pelo conjunto de parlamentares, deve ser público para que todos possam dele tomar parte e ter informações, inclusive para demonstrar seu apoio ou reprovação. Essas regras são estabelecidas no Regimento Interno.

Por isso, o Poder Legislativo é também chamado de "parlamento", o espaço onde a disputa entre interesses distintos dos cidadãos se dá pelo convencimento dos interlocutores e se materializa em proposições legislativas apresentadas e defendidas pelos seus representantes em todas as reuniões de debates. Essa atividade é chamada de Processo Legislativo e pode ser acompanhada neste Portal no SPL.

O Processo Legislativo é, portanto, a atividade que garante a publicidade dos debates, das decisões e dos processos de construção de acordos políticos, que ocorrem na Assembleia. Reúne as regras do jogo, definidas em acordo pelas partes e expressas na Constituição e no Regimento Interno.

Serve como instrumento que permite transformar em interesse público (de todos) algo que se inicia como proposição de uma parte dos cidadãos.

 

PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO DE UM PROJETO DE LEI EM LEI[2]

Tudo começa quando o Deputado ou os cidadãos, através da iniciativa popular, apresenta uma proposta para regular a vida em sociedade sobre determinado tema.

 

Passos

  1. A proposta é escrita na forma de um Projeto de lei, lida no expediente da sessão plenária e publicada para que todos a conheçam.

  2. As primeiras opiniões divergentes são apresentadas na forma de Emendas ao Projeto de lei. Para tanto, abre-se um prazo chamado de Pauta. As Emendas também são publicadas para que todos as conheçam.

  3. Divulgados o Projeto e as Emendas, são enviados pelo Presidente da Assembleia para a análise e deliberação das Comissões Permanentes. Essas Comissões iniciam o debate das proposições nos seus aspectos de legalidade, temas e recursos públicos exigidos. Podem apresentar outras formas de aprovar a proposta em debate, que são chamados de Substitutivos e realizar audiências com os cidadãos interessados. Todas as reuniões são abertas ao público.

  4. A primeira prova acontece na Comissão de Constituição e Justiça, que vai dizer se as proposições são legais e permitidas pela Lei Maior, que são as Constituições do Brasil e do Estado. O Projeto e as Emendas devem atender às suas exigências. Aprovado nesta Comissão devem ser analisados e aprovados quanto ao seu conteúdo, pela Comissão especializada.

  5. Conforme o tema tratado, o Projeto será analisado por uma Comissão Permanente chamada de comissão de mérito. São 18 comissões temáticas, definidas nos artigos 29 a 31 do Regimento Interno. Aprovada quando ao seu conteúdo a proposição poderá ir para o debate na Comissão de Finanças e Orçamento, caso sua realização necessite de recursos públicos.

  6. A Comissão de Finanças e Orçamento vai debater e deliberar sobre as verbas públicas necessárias, caso a proposta contida no Projeto e nas Emendas se transforme em lei, bem como sobre a programação orçamentária mais adequada.

  7. Concluídas as avaliações das Comissões, o Projeto está pronto para ser votado pelo conjunto de todos os Deputados, que compõem o Plenário. As deliberações das Comissões são publicadas para que todos as conheçam, na forma de Pareceres sobre o Projeto e as Emendas, e o Presidente da Assembleia as inclui na Ordem do Dia das votações.

  8. O Plenário, reunindo todos os representantes eleitos dos cidadãos, é a instância máxima de debate e deliberação. Pode propor novas emendas, que devem voltar às Comissões para serem também analisadas, de modo a produzir o acordo político entre as propostas e, finalmente, aprovar ou rejeitar a proposição através do voto.

  9. Aprovado, o Projeto será submetido à Comissão de Redação, caso tenham sido acatadas as emendas apresentadas, e publicado um Autógrafo, que é um decreto da Assembleia Legislativa expressando a forma final da proposta aprovada pelos representantes dos cidadãos. Caso não tenha sido aprovado com emendas, será elaborada uma minuta de autógrafo de modo a adequar à proposição à melhor técnica legislativa.

  10. O Autógrafo é enviado para o Governador do Estado que pode aprová-lo, promulgando então a Lei, ou rejeita-lo, com base em motivos justificados, vetando total ou parcialmente.
    Vetado o Projeto, ele retorna à Assembleia que repetirá os passos de 1 a 9 para apreciar os motivos da rejeição pelo Governador. Caso a Assembleia concorde com os argumentos do Governador aprovará o veto e arquivará o projeto, caso discorde rejeitará o veto e promulgará a Lei.

  11. Além das proposições, que expressam a competência legislativa da Assembleia, há também os instrumentos do processo legislativo destinados a realizar a função fiscalizadora do Poder Legislativo, em relação aos atos do Poder Executivo e ao cumprimento de direitos humanos, sociais e do consumidor, na sociedade.

 

 

 


[1] Informações retiradas o site da Alesp: https://www.al.sp.gov.br/processo-legislativo/sobre/

[2] Informações retiradas o site da Alesp: https://www.al.sp.gov.br/processo-legislativo/sobre/

 

Oficina - Saúde Mental e Medicalização: Como cuidar no acolhimento?

Oficina - Saúde Mental e Medicalização: Como cuidar no acolhimento?

No dia 13 de Abril de 2022 o Instituto Fazendo História realizou a oficina presencial com o tema: “Saúde Mental e Medicalização - como cuidar no acolhimento?”, que contou com a participação das especialistas: Fernanda M. P. de Resende, médica psiquiatra formada pela USP, mestra pela UNIFESP, trabalha na saúde pública desde 2007, em CAPSiJ e NASF, e, Luana Marçon, terapeuta ocupacional, mestra e doutoranda pela UNICAMP, na área de Política, Planejamento e Gestão.

A abertura da oficina se deu com a fala da psiquiatra Fernanda comentando que os maiores especialistas são as crianças e os adolescentes uma vez que são eles que vivenciam cotidianamente o sofrimento, Fernanda fala da importância de ter seu percurso profissional no SUS, e que a partir dessa experiência encontra outras formas de cuidar dos pacientes infanto juvenis para além da medicalização. Comenta que seu trabalho está na contramão da medicalização de crianças e adolescentes, enfatizando os seguintes pontos: o perigo da patologização precoce, considerando a idade, as fases do desenvolvimento daquele sujeito, a história de vida, o contexto no qual ela está inserida, a cultura e a socialização.

 A especialista conta que a questão da medicalização não se trata apenas de administrar “essa” ou “aquela” medicação, devendo-se considerar todos os fatores acima descritos.  Fernanda citou o exemplo do uso excessivo da Ritalina, reforçando que há estudos tanto no Brasil como nos Estados Unidos que seu uso está em uma porcentagem muito alta. Alerta sobre o perigo de profissionais e familiares por essa busca desesperada por um diagnóstico, sendo que pode haver profissionais que avaliam sem a devida atenção e cuidado que esse paciente merece, questionando a necessidade de na primeira consulta a criança já ser medicada.

Fernanda também aborda o uso excessivo da Ritalina e da Risperidona, uma vez que não existem estudos suficientes sobre os efeitos desses medicamentos em crianças. Os adultos passam a buscar incessantemente rótulos, como o TDAH, que é aquela criança agitada, que não para na cadeira, tem dificuldade em se concentrar, tem dificuldade na aprendizagem, não estuda muito, mas tanto na realidade dos serviços como fora dele, não é difícil encontrar crianças assim. A criança tem muita energia, é corpo, é movimento, e qual tem sido o benefício ofertado para as crianças e adolescentes quando introduzimos a medicação? Será que a criança está em sofrimento ou será que são os adultos que não estão conseguindo lidar com seus comportamentos? Existe uma cultura que diz que devemos interditar as crianças.

Para tanto, a especialista traz o DSM V, que define as categorias (classificações diagnósticas), mostrando o quanto tem aumentado o número de diagnósticos na infância, e como tais critérios vão se alargando, e mais pessoas foram entrando no diagnóstico, como por exemplo o autismo, e vão escalando em níveis, tais como: leve, moderado e grave, entre outros transtornos mentais, como depressão, ansiedade, TDAH.

Fernanda comenta que na década de 60/70, houve um avanço no estudo da infância, e cada vez mais as famílias vão se sentindo pouco autorizadas a cuidar das crianças, buscando por especialistas, por psicólogos e etc, perdendo assim a capacidade de cuidar de seus filhos. Ela também cita como o neoliberalismo influencia diretamente no processo de medicalização, e o quanto esse sistema vai definindo algumas formas de viver, de nos portar, de nos comunicar, incentivando o individualismo e exigindo que o sujeito tenha performance. O aumento do uso de Ritalina vem para aumentar a performance, passando a ser usado por universitários, porque isso aumenta a concentração, mesmo sem eles terem algum tipo de diagnóstico, uma vez que a sociedade passa a olhar para o sujeito como alguém que precisa entregar resultados, mesmo com os riscos do uso.

A especialista também destaca o avanço da psiquiatria biológica a partir da década de 50, que começa a desenvolver os medicamentos e gera uma “febre” com a possibilidade mudar o comportamento das pessoas com determinada medicação. A indústria farmacêutica investe e ganha muito com isso e as pesquisas de novas medicações são patrocinadas pela indústria farmacêutica. Importante ressaltar que muitos medicamentos não possuem estudos dos efeitos de dependência e as pessoas não conseguem largar, alertando que deve existir uma cautela no uso de qualquer medicação.

No final de sua fala ela traz um trecho do filme System Crasher, na tradução do Brasil “Transtorno Explosivo”. O vídeo traz uma criança que tem questões de agressividade e é acolhida, por sua mãe não conseguir lidar com seus comportamentos, e então passam a olhar e cuidar dela como uma criança que possui questões de saúde mental e deixam de considerar sua história. Fernanda finaliza dizendo sobre os efeitos colaterais das medicações, a curto prazo e a longo prazo, impacto na subjetividade e controle dos corpos. Efeitos a curto prazo:  sonolência, diminuição de apetite, dificuldade de concentração, apatia. Enfatizou o quanto se perde da infância quando a criança toma  medicação - o contato com a fantasia, com o sonho e com o onírico. A longo prazo: muito ainda não se sabe, mas pode ter alteração no crescimento (abaixo do esperado), pouco ganho de peso, ginecomastia (crescimento dos seios tanto em meninas como meninos), alteração dos movimentos, tremores, assim como questões neurológicas e comportamentais, sem contar o impacto na subjetividade, o quanto a criança se sente incapaz de lidar com seus próprios conflitos, porque ainda está em desenvolvimento. 

Em seguida, a especialista Luana inicia sua fala mencionando que poderia discorrer sobre ter sido uma criança diagnosticada na infância e o quanto a escolha de sua profissão (Terapia Ocupacional) tem a ver com a proximidade de sua mãe em serviço de acolhimento. A especialista convoca os profissionais ali presentes a se reverem enquanto sujeitos que darão possibilidades para que as crianças se expressem em suas diferentes singularidades, e o quanto os adultos (nós), estamos reduzindo a nossa capacidade de pensar e fantasiar junto - a infância pode ser um lugar que está em todos nós. Luana destaca que tanto ela quanto Fernanda partem do princípio que existem crianças que possuem sofrimento psíquico grave e crianças em processo de adoecimento mental. Porém, apesar de existirem essas crianças, muitas vezes elas não têm acesso ao tratamento. Mesmo assim, em nossa sociedade, estamos medicando um número cada vez maior de crianças que não possuem nenhum tipo de transtorno mental e isso inverte o nosso problema, traz um modo empobrecido de pensar a infância e as possíveis soluções. A especialista provoca o público a ler poesias, autores que tirem desse lugar do não pensar além.

A questão da medicalização atinge todos nós, mas o eixo de crianças e mulheres é atingido de forma brutal e voraz, e se faz necessário fazer um recorte social - de classe, raça e gênero, pois enquanto algumas crianças, adolescentes e mulheres estão buscando acesso, em outros lugares esse mesmo público possui acesso sem dificuldade. De qual lugar falamos? Precisamos compreender que esse lugar do qual estamos olhando para as crianças e adolescentes está envolto de um período histórico e político, pautados por contingências sociais a partir dos marcadores citados. É preciso lembrar que no meio disso tudo a sociedade também exige que essa criança seja um “futuro vencedor”, e aí nos deparamos com o fracasso dessa equipe que não consegue educar e formar de forma suficiente essas crianças e adolescentes, que de alguma maneira já são estigmatizados por essa mesma sociedade.

Luana continua trazendo a importância de historicizar o campo infanto-juvenil e questiona como a psiquiatria começa a se interessar pelas crianças. Diferente do adulto que a psiquiatria vai investigar quem é o louco, no campo da infância a psiquiatria se interessa pelo “vagabundo”, a figura da criança que não pode ser inserida no aparelho social, a que não dá certo na escola, que não cumpre um destino e um projeto familiar. Devemos nos ater nesta premissa para entendermos do ponto de vista institucional que estamos cuidando de algo que foi produzido no século 19. Ainda não há uma preocupação sobre a  loucura da criança, mas sim de corrigir o vagabundo e a idiotia, aquelas crianças que não tem capacidade de aprender, que não vai cumprir um futuro no trabalho. A psiquiatria está preocupada com as instituições totais que vão dar conta dessas crianças, a partir do código de menores, pensando em cumprir um determinado papel que é “punir e disciplinar.”

Quando falamos de medicalização, não estamos falando apenas do olhar do especialista -  todos nós somos em algum nível convocados a narrar a partir de uma linguagem psicológica e psiquiátrica. A especialista dá um exemplo destacando que algumas palavras desapareceram do nosso vocabulário, como angústia, crise existencial, essas palavras foram substituídas por: ansiedade, depressão, insônia, etc.  Pontua que o problema da medicalização diz respeito também a um problema de linguagem, que não cabe somente ao médico especialista, mas de uma linguagem que é nossa, trazendo para a responsabilização de todos que “cuidam dessas crianças”. Para tanto, precisamos convocar o especialista, e todos nós a olhar a criança como um espaço potencial de risco, citando a primeira infância, onde nesses três primeiros anos tudo pode emergir, seja no que diz respeito ao comportamento, qualquer questão genética e do desenvolvimento. Nossa responsabilidade é evitar danos, prevenir riscos e fazer bons encaminhamentos. 

Luana fala do esvaziamento do cuidado de um familiar ou de um educador, ao passo que um certo regime de normas vai se expandindo, como - norma de desenvolvimento, norma de escrever normal, o jeito de falar corretamente. Falamos desse lugar do adulto em experimentar cada vez mais destituídos dessa autoridade que se distancia desse regime de normas, e isso gera uma confusão de que cuidar é vigiar. Ela provoca todos a sair desse lugar, para imaginar outros caminhos possíveis.

A especialista também cita o neoliberalismo como um regime que vai olhar as pessoas e as crianças que cuidamos como um investimento, como um futuro capital humano, e o que quer que falte tem a ver com sua falta de capacidade. Este é um regime de determinação e, no momento que estamos debatendo a identidade de gênero, o mundo avança para fazer chá revelação, para determinar se aquela criança vai ser menina ou menino, antes mesmo de nascer, a criança é individualizada antes de nascer e esse cenário restringe muito a nossa capacidade de lidar com crianças em situações difíceis, em adoecimento, em situação de institucionalização ou violência. 

Em seguida, Luana trouxe duas situações fictícias para se pensar na realidade e no cotidiano do acolhimento com crianças e adolescentes difíceis, refletindo sobre como os educadores podem narrar suas histórias para além das questões e do diagnóstico. O diagnóstico pode ganhar um lugar e ir destituindo tudo que o que se sabe sobre aquelas crianças e quando direcionamos essa criança para um especialista pode gerar um empobrecimento da subjetividade, dos modos de interação com a infância e também vai destituindo os adultos, os educadores do lugar que eles sabem sobre as crianças. Luana chama atenção para quanto fomos condicionando a necessidade das crianças a laudo, condicionando transporte a laudo, apoio escolar a laudo, mas não condiciona as necessidades materiais, concretas e psicológicas das crianças. Portanto, o diagnóstico e a medicina são importantes, mas não são totalizantes para lidar com a infância.

Ademais, a especialista retrata que no começo do século XX, os estudos estavam focados na sexualidade da criança, criança esta que joga, brinca, provoca. Estamos pensando na sexualidade nesse lugar de vida, que impulsiona, que desobedece, que se recolhe. Atualmente estamos lidando com uma certa mortificação desses atos, havendo um desaparecimento do brincar mais genuíno, sem sentido, um brincar que te lança ao risco, da possibilidade de fantasiar. São nesses momentos que a criança está se preparando para o mundo nas brincadeiras que elas mesmas criam. Será que a infância pode ser ao menos um pouco esse lugar que esse corpo que é adulto já passou e compreende de que lugar a criança fala e se manifesta?

Por fim, foi aberto ao diálogo com os participantes que trouxeram dúvidas e reflexões sobre o tema.

A oficina está disponível na íntegra no canal do YouTube do Instituto Fazendo História:

Parte 1:

Parte dois:

Com apoio do Proac, o Fazendo Minha História chega em mais abrigos no município de São Paulo

Com apoio do Proac, o Fazendo Minha História chega em mais abrigos no município de São Paulo

Acreditando no potencial e na transformação da literatura no contexto de acolhimento. É com muita alegria que divulgamos em primeira mão os 7 serviços de acolhimento selecionados para participar da nova edição do "Mar de Histórias" na cidade de São Paulo:


1. Casa Lar Estrela do Amanhã 1

2. SAICA Casa Girassol

3. Casa Lar Estrela do Amanhã 2

4. Projeto Amigo das Crianças (PAC 3)

5. SAICA Américo Ventura

6. SAICA Estrela do Bom Jesus

7. SAICA São Judas Tadeu

Construiremos juntos com cada um dos serviços de acolhimento parceiros uma biblioteca aconchegante para receber 200 livros infantojuvenis. O projeto ainda prevê encontros e eventos literários e todo suporte necessário para favorecer o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes acolhidos.

Parabéns aos selecionados, estamos muito felizes por fazer história com vocês! 


Equipe Fazendo Minha História.

Família de origem: que direitos possuem e que tratamento merecem?

Família de origem: que direitos possuem e que tratamento merecem?

O que está por trás de uma situação de violação dos direitos de uma criança ou adolescente? Quem praticou a violação? Quando se pensa em uma criança ou adolescente que sofreu algum tipo de violência ou que se encontra numa situação de desproteção, o senso comum nos leva, através de um olhar desatento, a atribuir a responsabilidade somente aos pais. Essa primeira impressão pode nos levar a pensar que o acolhimento e a adoção seriam as melhores ou únicas soluções para proteger meninos e meninas que tiveram seus direitos violados. Mas o ECA nos explica que não são esses os primeiros caminhos.

O artigo 101, § 1º, explica que o acolhimento institucional e o acolhimento familiar são medidas provisórias e excepcionais, utilizáveis como forma de transição para reintegração familiar ou, não sendo esta possível, para colocação em família substituta. Trocando em miúdos, a Lei nos diz que o acolhimento não tem um caráter permanente e, de acordo com o artigo 19, não deve se prolongar por mais de 18 (dezoito meses). Além disso, o acolhimento deve ser uma exceção, uma medida rara a ser tomada somente em último caso. Segundo as Orientações Técnicas: Serviços de acolhimento para as crianças e adolescentes (2009),

Destaca-se que tal medida deve ser aplicada apenas nos casos em que não for possível realizar uma intervenção mantendo a criança ou adolescente no convívio com sua família (nuclear ou extensa).

Para que este princípio possa ser aplicado, é importante que se promova o fortalecimento, a emancipação e a inclusão social das famílias, por meio do acesso às políticas públicas e às ações comunitárias. Dessa forma, antes de se considerar a hipótese do afastamento, é necessário assegurar à família o acesso à rede de serviços públicos que possam potencializar as condições de oferecer à criança ou ao adolescente um ambiente seguro de convivência (pg 23).

 

Para que possamos compreender melhor o que significa fortalecer, emancipar e incluir socialmente as famílias, o artigo 101 do ECA nos ensina que antes de se pensar em acolhimento ou colocação em família substituta (adoção, guarda ou tutela), precisamos adotar outras medidas protetivas: orientação, apoio e acompanhamento temporários à família; matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; inclusão em serviços e programas oficiais ou comunitários de proteção, apoio e promoção da família, da criança e do adolescente; requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos.

Vale destacar que o ECA estabelece também, em seu artigo 23, que pobreza não é motivo para que uma criança ou adolescente seja afastada de sua família. Em outras palavras, a família deve antes da hipótese de acolhimento receber todo o apoio possível. O Estado deve oferecer as condições para que saia de uma eventual situação de pobreza, deve lhe oferecer acesso à rede de serviços públicos que permitem exercer seu papel de proteção e cuidados. Se ainda assim, se mantiver uma situação de violação de direitos, a criança ou adolescente poderá ser encaminhada pela autoridade judiciária para um serviço de acolhimento.

Se o acolhimento de fato se mostrar necessário, o artigo 101 do ECA nos diz ainda que o principal objetivo dessa medida de proteção é viabilizar, no menor tempo possível, o retorno seguro da criança ou adolescente à sua família de origem ou extensa.

Talvez você se pergunte: puxa, mas se uma criança ou adolescente precisou mesmo ser afastada da sua família, seria este o melhor lugar para ela voltar? Para encontrarmos essa resposta, precisamos antes responder outras perguntas. Quem são esses pais? Quais são seus nomes, suas histórias de vida, seus sonhos, suas necessidades e aflições? Que dificuldades encontraram para cuidar e proteger seus filhos? Na maioria dos casos essas informações nos farão perceber que as famílias de origem também tiveram seus direitos violados e por isso não encontraram condições para cuidar e proteger.

A maioria é composta por mulheres pobres, negras, com vínculos familiares e comunitários fragilizados ou rompidos, com moradia precária ou inexistente, que vivem uma situação de insegurança alimentar. Trazem no corpo e na alma as marcas da violência de gênero, do racismo, da rejeição, abandono e exclusão. São mulheres e homens que também precisam ser protegidos, acolhidos, amparados.

Se fizermos as perguntas certas e estivermos abertos para ouvir genuinamente todas as versões que nos forem narradas, descobriremos que não é possível ajudar as crianças e adolescentes sem ajudar suas famílias. Descobriremos que não podemos criminalizar uma mãe ou um pai por serem pobres. Descobriremos que não podemos julgar quem passou por tantas experiências duras. Descobriremos que só será possível transformar a realidade do acolhimento no Brasil se fortalecermos as políticas públicas que asseguram os direitos fundamentais aos cidadãos que se encontram socialmente desprotegidos.

Se conseguirmos, portanto, desvelar as inúmeras situações e condições que culminaram na situação extrema de acolhimento, perceberemos que essa medida de proteção exige a realização de um precioso e complexo trabalho com as famílias de origem, cuja missão será a superação das situações adversas ou padrões violadores que levaram ao afastamento da criança e/ou adolescente.

O trabalho de fortalecimento e emancipação das famílias de origem pressupõe, acima de tudo, a preservação dos vínculos familiares. Dessa forma, os serviços de acolhimento devem garantir e incentivar visitas regulares das famílias, flexibilizando e planejando os horários de acordo com as possibilidades de cada uma. Nessas visitas, devem se sentir respeitadas, acolhidas e tratadas com dignidade. Devem sentir que ali é um espaço de apoio, cuidado e proteção; e não de julgamento e fiscalização.

Os serviços devem promover a participação das famílias na rotina da criança ou adolescente. Essa participação pode acontecer através da organização das festas de aniversário de seus filhos e de outras datas comemorativas, da participação em consultas médicas e reuniões escolares, da preparação de um almoço de domingo, da hora do banho, de passeios culturais, de oficinas de artesanato e cultura nas quais as famílias de origem transmitam seus conhecimentos. Além disso, sempre que possível, é desejável que as crianças e adolescentes passem férias e feriados na casa de seus familiares.

Esse convívio regular favorecerá a reintegração familiar quando esse momento chegar. Mas, e se esse  momento não chegar? Mesmo quando os profissionais da rede de proteção empreendem todos os esforços para as famílias se fortalecerem, sabemos que ainda haverá situações em que as crianças e adolescentes não poderão voltar para as suas famílias de origem.

Esse delicado contexto exige reflexão: será que a destituição do poder familiar é indicada para todos os casos? Será que para as crianças maiores e adolescentes com poucas chances de adoção não seria melhor continuar convivendo com seus familiares ainda que não possam voltar a morar com eles? A sensação de pertencimento a uma família e convívio, mesmo que irregular, com seus familiares talvez seja, em muitos casos, melhor do que o vazio simbólico deixado por uma destituição do poder familiar.

Quando a destituição do poder familiar se apresenta como a alternativa que responde ao melhor interesse da criança ou adolescente, podendo assim ser encaminhada para uma adoção, é preciso envolver de maneira cuidadosa pais e filhos nesse processo de decisão. Tanto os adultos quanto as crianças, respeitando suas idades e capacidade de compreensão, participaram de conversas e reflexões sobre a situação familiar? Todos entendem o que está acontecendo? A opinião de todos foi considerada? O que cada um pensa a respeito da possibilidade de nunca mais poderem se ver? 

Precisamos sempre exercer a empatia e nos colocar no lugar que quem está vivendo essa situação: se um filho estivesse prestes a não poder nunca mais conviver com seus pais o que sentiria? Se um pai ou uma mãe estivesse diante do risco de perder o direito de ver seus filhos, possivelmente à sua revelia, que sentimento carregaria? Uma vez que a decisão judicial for formalizada, não seria cruel e violento demais simplesmente impedir que pais e filhos voltem a se ver? Um corte abrupto, sem despedida, realmente beneficia ou protege alguém?

Essa separação definitiva exige respeitar o tempo que os afetos precisam para ser olhados, acolhidos e elaborados. Pais e filhos merecem viver o luto que a destituição do poder familiar traz à tona. Pais e filhos têm direito a uma despedida. Precisam de rituais que os ajudem a lidar com um sofrimento que qualquer ser humano teria dificuldade de superar: a dor de perder alguém que amamos. Não há receitas prontas para a realização desse ritual, cada um pode decidir como gostaria de se despedir. Desenhos, fotos, cartas, objetos e presentes são maneiras de guardar lembranças concretas uns dos outros.

Quando um acolhimento tem início não se sabe qual será o seu desfecho. A reintegração familiar estará sempre no horizonte, guiando as ações de toda rede de proteção, mas nem sempre ela será conquistada. No entanto, tão importante quanto o encaminhamento final são os processos realizados junto com as famílias de origem, crianças e adolescentes durante o acolhimento. Ainda que a reintegração familiar não se mostre possível, poderemos ter nossa consciência tranquila quando tivermos a certeza que fizemos tudo que era possível para uma determinada família, quando tivermos certeza que ela foi tratada com o toda a empatia, respeito e dignidade que qualquer pessoa merece quando enfrenta o momento mais difícil de sua vida.

Por: Debora Vigevani