No dia 27 de julho de 2022, o Instituto Fazendo História realizou a oficina online “Como falar sobre histórias difíceis”, que contou com a participação da especialista Valeria Tinoco, psicóloga, mestre e doutora pelo Programa de Psicologia Clínica da PUC-SP, autora de capítulos em livros e artigos científicos e representante da IAN Brasil (International Attachment Network).
Valéria inicia abordando como o trabalho na área do acolhimento fundamenta-se a partir de temas difíceis, sendo que ele começa quando algo dá errado, em alguma medida. Coloca como uma grande pergunta: como lidar com temas que geram em nós, e imaginamos que também vão gerar nas crianças, emoções muito complexas, normalmente associadas ao sofrimento? Ela traz que, quando poupamos as crianças dessas conversas, fazemos com as melhores das intenções, para que não enfrentem mais dificuldades, e que a proposta da oficina é conversar sobre alguns temas para vermos a que conclusão chegamos.
A especialista apresenta, então, uma história que faz parte do livro “Meu filho Pato”, organizado pelo Ilan Brenman e apoiado pelo Instituto Quatro Estações. O conto se chama “Pensamentos da bexiga murcha”, de Indigo, e trata de temas difíceis, como envelhecimento, morte e medo, de uma forma possível e leve, sem negar essas questões desafiadoras e sem fazer uso de formas distorcidas ou metáforas para poder enfrentá-las. A partir disso, ela salienta que, para abordar o assunto da oficina, gostaria de fazê-lo por meio de três eixos: 1) os temas difíceis em si; 2) a partir da perspectiva da criança ou do adolescente; 3) falar sobre o adulto que conversa com a criança.
Valéria, iniciando pelo terceiro eixo, colocando que esse tipo de conversa com as crianças requer disponibilidade da nossa parte: precisamos estar disponíveis emocionalmente, ter tempo e espaço em nosso entorno. Traz que questões, como Eu aguento?, Tenho tempo?, Estou preparada para falar sobre isso?, precisam estar em nosso radar, indicando o que devemos nos atentar para viabilizarmos estas conversas, seja cuidando de nossas próprias dores, buscando ajuda ou nos informando sobre aquilo que não temos ainda muito repertório para lidar. Reforça que quando evitamos certos assuntos visamos proteger a criança, mas será que não queremos também nos proteger? Esses temas podem gerar também nos adultos sentimentos como tristeza, medo e vergonha, associados à forma como foram criados, passando por situações onde não se podia conversar ou suas necessidades não eram reconhecidas.
Traz, então, que não é o fato de conversarmos sobre temas difíceis o responsável pelas emoções dolorosas - estas têm origem na notícia em si, que está além do que o adulto, seu portador, pode controlar. Quando não falamos de determinado assunto, não permitindo que a criança ou o adolescente conheça dados de sua história, estamos negando-lhe a oportunidade de elaborar aquela experiência. O acúmulo de vivências não elaboradas vai impactar enormemente em sua saúde mental e em seu desenvolvimento, principalmente no que se refere à formação de vínculos. Coloca como questão: como essa criança ou esse adolescente vai se vincular e confiar em alguém se vive cheio de mistérios e lacunas, e se há partes de sua história que não consegue entender? Ela enfatiza que cabe aos Serviços de Acolhimento trabalhar para preencher essas lacunas, dizendo às crianças e aos adolescentes que, apesar de difíceis, eles podem dar conta de caminhar com a sua própria história. E que, quando falamos, os preparamos não apenas para lidar com a situação daquele momento, mas também para enfrentar outros acontecimentos que necessariamente vão passar e que lhes dizem respeito.
Em seguida, a especialista apresenta elementos para pensarmos acerca dos temas difíceis em si e como estes nos despertam sentimentos que nos deixam vulneráveis, e tendemos a evitá-los. Além disso, o desconhecimento do tema e o tabu que permeia o falar de certos assuntos e que percorre gerações podem gerar mais desafios. Traz exemplos de sua experiência prática indicando uma tendência, de muitas vezes, as pessoas acreditarem que, para começar uma nova história, tudo o que diz respeito ao passado deve ficar para trás, incluindo as relações e vínculos temporários criados nas experiências de acolhimento. E reforça o quanto é importante, mesmo com o sofrimento gerado pelo rompimento inerente ao acolhimento, o desenvolvimento de vínculos de qualidade e o aprendizado de que é possível se vincular e viver uma experiência de afeto. O sofrimento em uma relação de vinculação é um sinal de saúde emocional e o problema aparece quando não sentimos nada a partir de um rompimento. Recorre à frase do especialista em luto Colin Parks, “a dor da perda é o custo do compromisso, perdemos só o que temos”, para dialogar acerca da ideia de que a única forma de não sofrer diante do afastamento é o não investimento na relação e em outros futuros possíveis para as crianças e adolescentes, o que sai do escopo do trabalho a ser desenvolvido em um Serviço de Acolhimento.
Em relação ao eixo da perspectiva da criança ou do adolescente, Valéria se refere a como não saber o que aconteceu é muito mais angustiante e torna a perda muito mais complexa de ser enfrentada, uma vez que, quando há segredos ou mistérios, ele não consegue construir uma nova forma de estar nesse mundo. Levanta como questão: o que podemos, como adultos, oferecer a essa criança ou a esse adolescente para facilitar o enfrentamento de uma situação desafiadora, a reconstrução de seu mundo e a confiança de que a vida vale a pena de ser vivida? Salienta que, certamente, a resposta não é o silêncio, o qual caminha junto com a ideia de que aquilo que vivencia não é importante.
No final de sua apresentação, a especialista expõe os fatores que considera que dificultam ainda mais a vivência de experiências difíceis pela criança ou pelo adolescente: a falta de informação sobre o que aconteceu; não ter alguém em quem confiar para poder perguntar e pedir ajuda; não ter suas necessidades reconhecidas e não poder expressar o que se sente; um entorno instável e inseguro; e a exposição contínua a outros estresses. Valéria ainda apresenta mais dois recursos que podem contribuir para a instrumentalização para o trabalho com os temas difíceis. Primeiro, traz a técnica “O mundo de...”, espaço para que se coloque todos os elementos da história de uma criança ou adolescente, concretizando qual ela é e fortalecendo a ideia de que ele é capaz de enfrentar aquilo que está em seu mundo, encontrando, assim, uma sensação de potência. Em seguida, oferece uma animação, baseada no livro “O dia em que o passarinho não cantou”.
Por fim, foi aberto um espaço para que os participantes da oficina trouxessem perguntas e considerações sobre o que foi abordado, associando às experiências na área do acolhimento. Algumas questões foram levantadas, relacionadas às práticas de não vinculação e de não poder chorar como ainda frequentes e aos comportamentos de resistência apresentados por uma criança durante o percurso de adoção. Valéria aproveita para caracterizar o luto como um processo adaptativo a uma perda significativa e, como tal, normal e esperado. E fortalece o papel dos profissionais da área de acolhimento no lugar de compreender e oferecer conforto, a partir da experiência do outro.
Assista o vídeo com a oficina completa: https://youtu.be/JRSd5s1TT6E