No dia 19 de agosto de 2022, o Instituto Fazendo História realizou a oficina online “Acolhimento e religião: vamos falar sobre isso?”, que contou com a participação dos especialistas Valeria Pássaro, pedagoga, com especializações e larga experiência na área de educação e do acolhimento, e Luiz Eduardo Berni, doutor em psicologia (USP), mestre em ciências da religião (PUC-SP) e pesquisador do Ateliê de Pesquisa Transdisciplinar (APTD).
Valéria inicia a sua apresentação abordando como é importante abrir espaços para refletir sobre temas tidos como “quase ocultos” dentro da área do acolhimento, sendo a religião um deles: algo que pouco se fala, mas que, de alguma maneira, muito se vive nos serviços. Coloca, então, que falar sobre religiosidades nos faz pensar sobre o acolhimento enquanto um espaço de inclusão e traz como questões: será que os serviços de acolhimento são, de fato, espaços nos quais é possível incluir as diferenças, também acerca das diversas crenças e fés das pessoas? Será que os profissionais desses serviços perguntam sobre a religião das crianças e adolescentes? No cotidiano, como escutamos sobre as religiões com as quais se identificam, e também de suas famílias?
A especialista discute sobre a importância de se refletir sobre o lugar da religião em nossas vidas, ao considerarmos os serviços de acolhimento como espaços coletivos nos quais a vida circula. E, nessa perspectiva, ela se remete às épocas em que as pessoas se baseavam em rituais enquanto marcadores, acompanhando o desenvolvimento humano, dando ritmo à vida, e trazendo resposta sobre perguntas que até hoje nos acompanham, também dentro dos serviços: De onde vim? Onde estou? Para onde vou? Partindo dessa ideia, apresenta que, na área do acolhimento, existem rituais importantes, como, por exemplo, na chegada de um novo membro ao serviço, marcando um novo momento no grupo. Como acolhemos esse sujeito e, dentro desse todo que ele traz, a questão da religião? Reflete como, de maneira geral, ela é pouco provocada e escutada, considerando ainda que, apesar de vivermos em um país que se diz laico, na área do acolhimento, muitas vezes, está prescrito que algumas religiões, junto às suas crenças, têm mais valor que outras.
Valéria nos provoca também a pensar na representação que circula do serviço de acolhimento como uma “grande família”, onde os adultos determinam o que pode ser bom e no que é importante as crianças e adolescentes acreditarem.Em geral, marca-se um Deus, aquele que os adultos acreditam, sem perguntarmos a eles se e qual é esse Deus que creem. Ela questiona se há a possibilidade de acreditarem em outros jeitos e outras místicas, além desse Deus que prevalece, reforçando a dificuldade do estado brasileiro, cristão, de assumir como religiosidades possíveis as de matriz africana, o que aparece também no percurso do acolhimento. Contrapõe, então, o papel dos serviços de acolhimento, que deve ser de proporcionar inclusão e cuidado, ao preconceito quanto às diferenças e aos diferentes que, muitas vezes, se observa.
Ela segue trazendo suas experiências e reflexões de quando assumiu a coordenação de um serviço de acolhimento em São Paulo. Conta a história de uma adolescente que tinha o desejo de frequentar o terreiro, espaço no qual se sentia bem, mas encontrou resistência na equipe da instituição para acompanhá-la, até que outros educadores aceitaram ir e participar dos rituais com ela. Esse episódio acarretou em uma série de conversas sobre religião, religiosidades e fé entre os profissionais do serviço, e na criação do projeto “Expedições de mim”, com o intuito de ampliar a compreensão e o conhecimento de diferentes crenças a partir de encontros com sacerdotes de várias religiões e visitas a diferentes espaços pelos profissionais, crianças e adolescentes. Estas vivências proporcionaram muitos ganhos em termos de entendimento e acolhimento efetivo dos outros e de seus valores.
A especialista também enfatiza que, na área do acolhimento, precisamos estar firmes, no sentido de nosso propósito no processo de educação social com as crianças, adolescentes e famílias e, ao mesmo tempo, ser flexíveis, para saber que não sabemos, reconhecer que não conhecemos e expandir, buscando novos conhecimentos, inclusive com os meninos e meninas com os quais atuamos. Aborda que, se partirmos do princípio que não sabemos, e de que cabem outros saberes, histórias e movimentos dentro do acolhimento, acredita que é muito possível a inclusão, não só sobre religião, mas de muitos outros aspectos da vida, que facilitariam e tornariam o trabalho mais viável em termos de desenvolvimento de sujeitos.
Por fim, Valéria define a religião como uma forma de participação social, ao mesmo tempo que reforça como não há só um modo e as crianças, adolescentes e adultos precisam compreender e participar. Traz que não cabe aos educadores serem impositivos ou deterministas sobre o que se deve ser, caso contrário, podem desacelerar ou amputar as possibilidades de ser no mundo das crianças e adolescentes com os quais trabalham. Precisam, sim, atuar como experimentadores e questionadores acerca do que mais se tem no mundo e na vida, incluindo as várias possibilidades de religião e de religiosidades.
Luiz, ao retomar elementos da fala de Valéria, inicia colocando como, na legislação, não existe hoje religião oficial no país, mas a forma como o poder está estruturado nos leva a perceber que ele está na mão de determinados grupos religiosos, o que se materializa também na política. Para aprofundar essa ideia, ele organiza a sua reflexão apresentando elementos que contribuem para a compreensão da colonização como fundamento de uma sociedade desnivelada e excludente. Aborda como o Brasil é fundado a partir de um ato de violência, vindo do imperialismo europeu, movimento que surge na história com um ato simbólico de origem religiosa, marcado pela Primeira Missa. A religião surge sempre no conflito entre diferentes sociedades e, aqui, o cristianismo católico, tido como religião oficial, andava junto com o processo de escravidão dos indígenas.
O especialista, em seguida, discute a união entre a Igreja e o Estado nesse período, disseminando uma educação religiosa e marcando um monarca coroado “em nome de Deus”, estrutura esta que ainda vigora no estado brasileiro, em alguma medida. E reforça como entender essa matriz é fundamental, já que é nela que reside, em parte, a exclusão que vivemos e onde encontramos a razão da violência que leva à desestruturação social, demandando, então, ações e serviços, como os de acolhimento.
Luiz passa, então, a apresentar aspectos que fundamentam as religiões, como as práticas terapêuticas, algo que ajuda as pessoas a “se enquadrarem”. Traz uma frase do antropólogo Clifford Geertz para conceituar religião como um “sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, permanentes e duradouras disposições e motivações nos seres humanos”. E aborda duas dimensões importantes postas na sociedade: quando a fé conforta e ajuda a produzir bem estar, chamamos, na Ciência da Religião, de coping positivo; já o coping negativo surge quando a religião não ajuda a estruturar a vida e leva ao mal estar, promovendo dor ao sujeito e exclusão social.
Ele também coloca como a fusão do Estado e da Igreja promoveu o surgimento de uma casta privilegiada e de muito sofrimento do povo, gerando um conflito social, que leva à Revolução Francesa e à separação entre o Estado e a Igreja. Isto dá origem ao movimento de laicidade, que determina que Deus passa a ser o do coração e não mais o do Estado: o poder religioso fica para a crença individual de cada um e, ao mesmo tempo, surge uma instância que pode explicar as relações de conhecimento desvinculadas da religião, a ciência. Esse movimento pode fortalecer a possibilidade da diversidade religiosa ser de fato acolhida, ao privilegiar todas as matrizes de fé. Luiz finaliza retomando o percurso da reflexão que queria promover nessa oficina e pontuando como o impacto da religião na constituição das pessoas é muito pouco discutido, inclusive na formação acadêmica, o que contribui para aprofundar problemas sérios que podemos ver no estado brasileiro.
Na segunda parte do encontro, os participantes foram convidados a trazer perguntas e considerações acerca do tema, com base em suas experiências na área do acolhimento. Algumas questões que surgiram foram: como lidar com a contradição entre o que está prescrito nas Orientações Técnicas sobre as liberdades de crenças e religiões nos serviços e as práticas de instituições fundadas por organizações religiosas que direcionam como as coisas devem acontecer; e como não deixar a religião entrar dentro da Política Pública do Acolhimento Familiar quando ocorre dentro de uma família. Os especialistas, nesse momento, dialogaram sobre como esses espaços de acolhimento atuam, muitas vezes, como reflexos do que acontece na sociedade, perpassados por uma história de fazer o bem ligado às Igrejas Católicas. E reforçaram a importância de ouvir as crianças e adolescentes sobre o que acham e pensam sobre as religiões e, também, de compreender e considerar quais caminhos que as famílias de origem fazem na perspectiva das religiosidades, para que não exista tantos atravessamentos.