Fernanda Ramos
Jeferson Teodoro
Roberta Alencar

Ao longo dos anos temos acompanhado um número importante de serviços de acolhimento institucional sofrendo significativas transformações no que diz respeito ao seu funcionamento. E recentemente tem se somado a este cenário, de maneira mais expressiva, organizações que vem optando pelo encerramento definitivo de suas atividades de cuidados a crianças e adolescentes separados de suas famílias.

Não nos cabe aqui, um “julgamento” a respeito destas organizações que já não se sentem disponíveis para manter sob seus cuidados um Serviço de Acolhimento Institucional (SAICA) nos dias atuais. Ao contrário disso, vale pensar o quanto a decisão pelo fechamento de um serviço, muitas vezes, pode refletir a saúde de uma organização que, já não se identificando com o fazer necessário para o funcionamento de uma casa de tal natureza, renuncia a este papel, numa atitude corajosa e, acima de tudo, ética, haja vista as exigências e necessidades implicadas na sustentação de uma casa de tão alta complexidade.

A partir do acompanhamento do processo de fechamento de um serviço de acolhimento institucional na cidade de São Paulo, julgamos relevante compartilhar nossas reflexões sobre a importância dos cuidados necessários neste momento tão delicado. Momento de separações e despedidas, em que crianças e adolescentes são transferidos para outros serviços e os profissionais, além de terem que lidar com os diversos sentimentos que surgem em relação aos acolhidos, precisam lidar também com as questões que a situação mobiliza neles próprios desde sentimentos de impotência até a eminência do desemprego.

Da transferência de processo ao processo de transferência: quando o SAICA fecha

Se o cotidiano de um serviço de acolhimento já é marcado por uma infinidade de procedimentos técnicos, administrativos e jurídicos, como bem sabemos enquanto profissionais dedicados a este fazer, o processo de fechamento de uma casa desta natureza, sem sombra de dúvidas, coloca em cena tais exigências de uma maneira ainda mais contundente. Planilhas, prestações de contas, relatórios, audiências, transferências escolares, etc., tendem a demandar quase que completamente o dia a dia dos profissionais, haja vista o curto prazo que se tem para fazer tanto. E, neste cenário pouco facilitador, é necessária muita atenção e destreza para que os cuidados, manejos e transferências das crianças e adolescentes não fiquem capturadas como apenas mais um dos procedimentos administrativos que precisam ser enfrentados.

Num momento de tamanha instabilidade institucional é necessário muito cuidado ao pensar em cada ação com cada uma das crianças e adolescentes, levando sempre em conta a história de vida, os vínculos e referências afetivas estabelecidas durante o tempo em que o serviço funcionou, considerando que, por mais provisória que tenha sido a passagem de cada criança ou adolescente pelo serviço, este período foi, inevitavelmente, marcado por significativas relações afetivas e, por consequência, precioso para o desenvolvimento de cada um deles.

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Testemunhamos frequentemente que as mudanças de cuidados físicos e afetivos, se não assistidas e acompanhadas por um adulto atento e disponível, podem trazer à tona sentimentos muito intensos a estas crianças e adolescentes; memórias difíceis, algumas vezes diretamente relacionadas à experiência de ruptura de vínculos, que foi a forma como aconteceu, em muitos casos, a saída de casa, a separação em relação à família, aos amigos, comunidade, escola, entre outros.

O argumento de que, por se tratarem de crianças e adolescentes em situação de acolhimento, estes já estão acostumados a mudar de casa e cuidados o tempo todo, já nem sentem tanto, é cruel e violento, pois carrega a ideia preconceituosa de que, por estarem acolhidos institucionalmente, eles têm condições “especiais” para lidar com rupturas, e, não precisam de um olhar e escuta atentos para cada um dos vínculos que precisará ser desfeito. Cibele nos ajuda a compreender as consequências desta visão:

Cibele tem 17 anos e há alguns meses e está vivendo um momento bem delicado – em poucos meses precisará sair do serviço de acolhimento em que vive atualmente e passará a viver numa república. A garota tem muitas qualidades, mas uma experiência vivida em sua infância deixou marcas severas e os efeitos são sentidos ainda hoje. Cibele foi acolhida aos seis anos e sempre esperava a visita da mãe que vinha semana sim, semana não. Certo dia, Cibele ficou a tarde toda no portão a esperar e sua mãe não apareceu. Essa vivência aconteceu por muitas semanas depois disso, sem que sua mãe voltasse a visitá-la. A marca do abandono deixou grandes cicatrizes. O que Cibele não sabia era que sua mãe havia morrido e por isso não vinha mais visitá-la. A equipe, sofrendo bastante pela situação e por ver a espera da menina, não conseguia falar francamente com Cibele, acreditando que contar que a mãe tinha morrido seria mais dolorido do que deixar a menina acreditando que ela a tinha abandonado.

Cibele é afetiva e faz laços de amizade importantes, no entanto, não consegue manter vínculos de trabalho nem relacionamentos amorosos. Vai rompendo um atrás do outro! Já passou por alguns serviços de acolhimento e já vivenciou transferências mal cuidadas que só reafirmaram a marca do abandono.  Está vivendo esse momento da saída do serviço de acolhimento pela maioridade como mais uma reedição do abandono sentido na infância, o que tem sido muito difícil para ela e para a equipe do SAICA em que está acolhida atualmente e onde construiu referências importantes.

Assim como as “chegadas” a uma casa, as “partidas” também devem ser planejadas em termos de cuidados e manejos, para que, ao invés de reviver uma experiência traumática de ruptura, as crianças e adolescentes possam ter a possibilidade de vivenciar uma experiência de separação que pode até ser reparadora, ou seja, tenham a chance de ter cuidados para que se distanciem de novos abandonos e rupturas.

O desligamento gradativo é um dos princípios do ECA e os serviços de acolhimento devem lutar para que ele seja garantido. É comum acompanharmos processos de transferências de serviço, adoções e até mesmo retornos familiares sendo feitos de maneira significativamente rápida e pouco cuidadosa. Não há dúvidas que todos nós acreditamos que a situação de acolhimento institucional deva acontecer por um período provisório, transitório, como uma ação protetiva. Porém, isso não significa desconsiderar a importância do tempo que a criança permaneceu acolhida, nem dos vínculos construídos nesse período.

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Ao contrário, dar às crianças e adolescentes a possibilidade de preparar sua saída e se despedirem dos educadores, técnicos e demais crianças de uma casa, é um direito delas e, acima de tudo, um procedimento que leva em consideração os laços afetivos e a história construída conjuntamente, favorecendo enormemente a construção de novos vínculos, seja com as famílias biológicas ou adotivas, seja com os profissionais do serviço de acolhimento para onde a criança será transferida.

No fechamento de um serviço de acolhimento é de fundamental importância que as transferências das crianças e adolescentes não sejam reduzidas a atos concretos, ordens de encaminhamentos, mas que possam acontecer como processos elaborativos, dando a cada um a oportunidade de participar ativamente de todo o processo de sua transferência, favorecendo que sejam protagonistas deste momento, facilitando que se relacionem com os fatos a seu modo e que possam assimilar a nova realidade que se impõe da melhor forma possível.

É de fundamental valor, num momento como este, oportunizar espaço para falar sobre os fatos de forma verdadeira e honesta e, sobretudo, para que cada criança e adolescente possa expressar seus sentimentos a respeito da necessidade de ter que mudar de casa novamente, estando receptivo para acolher as angústias que surgirem, não apenas relacionadas com a experiência atual, mas também como uma possibilidade de revivência da ruptura/separação familiar. Além disso, explicar a realidade e apresentar as reais razões que motivaram a organização a fechar o serviço, ajuda a prevenir que um “não dito” instale uma sensação de culpa nas crianças e adolescentes, que, se não souberem a verdade, podem vir a considerar que o fechamento do serviço está diretamente relacionado a algo de errado que fizeram, ou por não virem se comportando adequadamente.

Neste momento, a criança ou adolescente precisa verdadeiramente da disponibilidade do outro, da escuta, do abraço e da confiança nas relações humanas, apesar das despedidas necessárias e de toda a dor que envolve este momento. As despedidas e transferências exigem muito do educador, pois ele precisa sobreviver em meio a muitas questões e angústias. A criança ou o adolescente pode reagir muito mal se não puder perceber a proteção no ambiente e, nestes momentos, são comuns as autoagressões, assim como as agressões ao outro e ao ambiente, e também episódios de fugas do serviço. É necessário, portanto, uma grande abertura por parte da equipe técnica e gestão para acolher as angústias, medos e questões que emergem tanto nas crianças/adolescentes quanto na equipe.

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Poder planejar e predizer os eventos é extremamente importante, pois promove estabilidade e gera segurança para as crianças e adolescentes. A continuidade e previsibilidade são características ambientais centrais para o desenvolvimento da criança e do adolescente, na medida em que levam à experiência de confiança. E, neste sentido, poder conhecer o novo serviço de acolhimento antes de ir, fazer uma visita, voltar, conversar sobre o que sentiu e assim ir gradativamente fazendo esta passagem, por exemplo, é uma experiência de valor fundamental, para que a criança tenha a possibilidade de dar sentido para aquilo que está vivendo.

Fazer as malas junto com alguém de confiança e referência afetiva pode ser um recurso de muita potência num momento como este. Poder ter tempo e companhia para pensar em tudo aquilo que quer levar consigo para sua nova casa, na bagagem de mão e na bagagem ‘do coração’, favorece a estas crianças e adolescentes experimentarem que separação não é necessariamente sinônimo de ruptura. Poder levar consigo objetos significativos (livros infanto-juvenis, fotos, álbuns, cartas, etc...) e levar novas relações vividas, para além dos laços familiares, possibilita que o acolhimento efetivamente propicie uma experiência reparadora na vida da criança.

Deparamo-nos muitas vezes com o receio por parte de alguns serviços em deixar as crianças fazerem contato com as “antigas referências”, como se isso pudesse dificultar ou prejudicar seu processo de adaptação no novo ambiente. No entanto, o que ocorre é justamente o contrário, ou seja, o que testemunhamos é que poder fazer ponte entre o antes e o depois, entre o ontem, o hoje e o amanhã, favorece a experiência de continuidade e confiança e auxilia o processo de adaptação a um novo ambiente.

Cuidando de quem cuida

O fato de todos os profissionais-educadores, num momento como este, também estarem atravessando um processo de luto, de despedidas e de insegurança profissional e pessoal, já que também deixarão de fazer parte daquela equipe, e por vezes até mesmo da organização, temendo situação de desemprego, sem dúvida, pode atravessar a capacidade de atuarem de forma cuidadosa e disponível para com as crianças e adolescentes - sendo até, em certa medida, previsível que aconteça.

Por isso, a equipe e a gestão devem estar bem amparadas e fortalecidas. É necessário muito cuidado com quem cuida, para que haja disponibilidade destes adultos em priorizar a criança e o adolescente, num momento em que todos estão inundados por emoções e sentimentos que seriam impossíveis de não transbordarem em qualquer ser humano em uma situação tão delicada como é a do desfecho de um serviço.

As crianças e os adolescentes demandarão muito num momento de insegurança e instabilidade com este e os adultos, intensamente envolvidos por este processo, podem, por vezes, ou se afastar como mecanismo de defesa diante de tanto sofrimento, desafio e angústia; ou se misturar com a história e a dor da criança e adolescente naquele momento, se colocando no lugar de responsável por ela, rivalizando e dificultando novas oportunidades de laços e vínculos se constituírem.

Existem inúmeras situações que mexem muito emocionalmente com a equipe de uma SAICA e o processo de fechamento de uma instituição é, sem dúvida alguma, uma delas.

Se as reuniões de equipe, as formações e as supervisões são essenciais no cotidiano dos serviços de acolhimento para se compreender melhor as experiências vividas e coletivamente pensar e planejar ações responsáveis almejando o melhor para cada criança e adolescentes, estes espaços tornam-se ainda mais fundamentais no momento do encerramento de um serviço, onde há muita fragilidade em jogo.

Ao supervisionar uma equipe em um momento tão delicado como este, pudemos testemunhar o quanto poder pensar nas especificidades, na história de vida e necessidades de cada criança/adolescente e poder planejar e acompanhar processos afetivos e individualizados de transferência, além de ser imprescindível para as crianças, mostra-se uma tarefa extremamente importante e revitalizadora para educadores atentos e preocupados, que, podendo também ser protagonistas neste processo, se sente muito aliviados ao poder fazer a passagem dos cuidados das crianças e adolescentes com quem estão vinculados e afetivamente ligados para novos profissionais, garantindo que possam continuar sendo assistidos da melhor forma possível e de acordo com suas especificidades e necessidades.

Referências bibliográficas

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