A seguinte nota foi escrita pelas entidades que compõem o Movimento pela Proteção Integral de Crianças e Adolescentes, do qual o Instituto Fazendo História faz parte:
O Movimento pela Proteção Integral de Crianças e Adolescentes, coletivo de indivíduos, movimentos sociais e entidades do Brasil, constituído e organizado para a promoção dos Direitos Humanos da criança e do adolescente, e que concentra esforços para a defesa do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a efetiva implementação da Proteção Integral enquanto doutrina régia para a infância e juventude no país, vem a público, a partir do evento “Adoção na Passarela”, ocorrido em 21 de maio de 2019 em um shopping center de Cuiabá/MT, expressar preocupação e REPÚDIO a práticas e campanhas, de instituições e de setores da sociedade civil, que, a pretexto de cumprir com atividades de promoção da chamada “adoção tardia”, expõem crianças e adolescentes, suas imagens e histórias, em flagrante relativização e desrespeito a comandos e garantias legais que asseguram seus direitos.
O evento mencionado ganhou a atenção da sociedade brasileira nas últimas horas, mas ele emerge de um continuum de ações similares que vêm ocorrendo e se expandindo já há vários anos pelo Brasil, e cada vez com mais apoio de órgãos do Poder Judiciário e organizações privadas como associações e grupos de apoio à adoção, que reproduzem a prática de exibir, divulgar, publicizar e disponibilizar crianças e adolescentes com condições legais de serem adotados, com vistas a encontrar pessoas interessadas em sua adoção.
Essas iniciativas têm ocorrido em estádios de futebol com o apoio direto de alguns clubes, com fotos e vídeos nas redes sociais e em sítios eletrônicos, com instrumentos de publicidade (outdoors, relógios de rua, transporte coletivo), além de exposições em ambientes de uso coletivo, como shopping centers e sessões de cinema. Há até mesmo aplicativos de “smartphones” para cumprir a referida função. Dessa forma, tal exposição é não só ampla e diversificada, como irrestrita e com reduzidos meios de controle.
Sobrevém desse cenário gravíssima colidência, de um lado, da busca por pretendentes à adoção de crianças e adolescentes privados da convivência familiar e comunitária e, de outra ponta, da observância e atendimento de direitos desses mesmos sujeitos, pessoas em condição peculiar de desenvolvimento e, muito frequentemente, tendo passado por outras violações.
O ECA positiva o respeito como direito fundamental, e preserva seu texto original nessa matéria destacando que a criança e o adolescente terão sua imagem preservada (art. 17). A imagem, assim colocada como direito da personalidade, torna-se bem jurídico indisponível e, portanto, não pode ser utilizada, banalizada ou divulgada, mesmo que seja no esforço de atender a um outro direito (o de convivência familiar, neste caso através da adoção), até porque ambos são interdependentes, não se admitindo, numa sociedade civilizada, que um se realize a despeito do outro.
O mesmo ECA repete a preservação da imagem ao prescrever a privacidade como princípio da ação protetiva do Poder Público (inc. V, art. 100), enaltecendo o respeito que qualquer agente da sociedade deve ter para reservar a vida privada de crianças e adolescentes, o que impede ingerências indevidas e abusivas na intimidade desses indivíduos.
Mesmo que se produzam tais apresentações de crianças e adolescentes de forma pretensamente cuidadosa, e até mesmo afirmativa, evitando-se tratamento vexatório, temos ainda assim situação de exposição, com riscos e potenciais prejuízos.
É frequente que tais programas divulguem não só as imagens, mas também a voz, as histórias, as expectativas e os desejos de cada criança e adolescente. Dessa forma, aspectos personalíssimos são lançados a um processo de massificação. São relatos e expressões que não surgem de um encontro com o outro, impossibilitando sua apreensão de forma singular e protegida, como se espera que ocorra num complexo processo de aproximação com um eventual pretendente à adoção.
Rejeitamos que sejam as crianças e os adolescentes chamados a ir a público mostrar seus aspectos subjetivos e pessoais a adultos que, por ventura, possam se sensibilizar com suas histórias, rostos e perspectivas. Crianças e adolescentes não são objeto para estarem “disponíveis”. E, sendo cidadãos, não podem ser oferecidos, coisificados como material de divulgação. Até porque, anuindo com a própria participação em tais campanhas, como tais crianças e adolescentes podem se sentir diante do insucesso de eventuais colocações surgidas com sua exposição? É esse o protagonismo de que fala o ECA?
Elevamos também preocupação com a propagação de um modelo de adoção menorista, pois centrado no interesse dos adultos, que podem “escolher” as crianças e adolescentes “disponíveis”, e com perigosa reaproximação a motivações altruístas, assistencialistas e salvacionistas que não condizem com a perspectiva da adoção moderna, legal, assistida tecnicamente, e que verdadeiramente atenda aos interesses e direitos da criança.
Compreendemos que tais iniciativas visam incidir num problema real, que é o da dificuldade para adoção de crianças mais velhas e adolescentes, negros e pardos, , grupos de irmãos, crianças e adolescentes com deficiência e/ou problemas de saúde, que formam grupo que permanece por longos períodos acolhidos em instituições. Porém, reafirmamos que o ECA e a política nacional atualmente vigente para o direito à convivência familiar e comunitária preveem mecanismos idôneos, seguros e sob controle social, como os cadastros de adoção.
Além disso, o ECA também prevê mecanismos de estímulo às “adoções necessárias”, para fazer frente a valores sociais e culturais que ainda estão na base da idealização da adoção, produzindo escasso número de pretendentes interessados nos grupos de crianças e adolescentes que, agora, são expostos.
Assim, no afã de responder a uma necessidade real e legítima de se encontrar famílias substitutas para aqueles que foram retirados de suas famílias de origem, e de forma definitiva, pelo Estado Brasileiro (famílias estas que, antes disso, já haviam sido desassistidas na tentativa de manter sua prole consigo), violam-se direitos fundamentais de crianças e adolescentes, e enfraquecem-se os dispositivos legais e as políticas existentes afetas à adoção.
Crianças e adolescentes brasileiros ficam invisibilizados sim, mas pelo descaso da sociedade e do Poder Público com seus direitos em todo o espectro da Proteção Integral, e não só diante da possibilidade da adoção.
Crianças e adolescentes brasileiros não podem ser vistos e notados apenas pelo interesse dos adultos.
São Paulo, 23 de maio de 2019.
COLETIVO “MOVIMENTO PELA PROTEÇÃO INTEGRAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES”