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No dia 20 de setembro aconteceu a oficina “Saúde Mental e Medicalização de Crianças e Adolescentes Acolhidos”, que contou com a participação da especialista Isabel de Barros Rodrigues, pedagoga e psicóloga com mestrado em Educação pela Faculdade de Educação da USP.

Isabel iniciou sua fala enfatizando a ideia da noção de normalidade ter se constituído ao longo da história partir de um padrão do que não é desejável, ou seja, do que difere de algum modo da maioria e se estabelece então como o normal. Historicamente ganha nomeações diferentes, mas é permeado pela lógica da seleção do desejável a partir daquilo que se interpreta como indesejável.  Destaca, assim, que a ideia do patológico não é dado naturalmente e sim é construído social e historicamente, onde a estruturação do concepção do que é saúde e o que é doença acontece por meio das evoluções médicas. A doença é entendida como uma tentativa de reestruturação das condições normais de funcionamento. A lógica para pensar doença, portanto, é a do corpo orgânico, que refere-se em eliminar um ponto de infecção ou parasitário que deve ser eliminado garantindo o reestabelecimento funcional. Assim, combater o que está causando o adoecimento permite restabelecer a saúde. A medicina ao definir o que é saúde produz normas de vida que ampliam-se do corpo para o comportamento humano. A consequência de transferir a lógica da doença do corpo para o comportamento é de intervir sobre aquele indivíduo para combater aquilo que é estranho ao corpo social.

Em seguida a especialista, como forma de evidenciar a construção social da loucura, apresenta explicações presentes ao longo da história. Na Antiguidade a loucura é entendida pelo viés mitológico, como por exemplo, no oráculo de Delfos mulheres que alucinavam eram tomadas como profetizas. Com o advento da medicina a loucura passa a ser entendida como um desequilíbrio dos humores para restaurar o equilíbrio havia a aplicação de uma terapêutica. Isabel salienta que neste momento, quando o diferente não é aceito, as práticas de exclusão correspondem a morte para o indivíduo. Exemplifica com a prática social destinada a crianças com deficiência, que ao serem compreendidas sem utilidade social eram postas para morrer.

Na idade Média há um continuísmo acerca do que é considerando diferente como a manifestação de um pecado. A lógica intensifica-se de manutenção de proteger a sociedade com a retirada de tudo aquilo que desvia da norma de funcionamento. Já no Renascimento há uma compreensão que o distúrbio pode ser explicado pela ciência, que defende a retirada do considerado doente por ser uma ameaça de contágio. Os mecanismos de controle e segregação se aprimoram com a alteração da intervenção não ser mais de excluir o louco para morrer e sim segregar e controlar. A ideia é localizar o que é razão a partir de quem está alienado da razão. Distinção que permite segregar institucionalmente quem está fora da norma. Passa-se a enviar todos os indesejáveis para tais instituições. A especialista apresenta Pinel como um importante psiquiatra na histórica da loucura que entendida a doença mental como um desequilíbrio moral das paixões, que causava uma interferência na razão. A doença mental, portanto, passa a ser entendida como uma distúrbio de excesso ou por uma falta. Além disso, Pinel introduz uma mudança no processo de institucionalização ao procurar localizar e separar quem de fato está a louco de quem deve ser preso por outras razões como, por exemplo, práticas infracionais. Há, assim, a localização da doença mental como um tipo de adoecimento que justifica a segregação.  

O paradigma que domina é o biomédico, ou seja a partir do que define-se como saúde se localiza a doença pelos sinais e sintomas, busca-se a lesão, se produz um diagnóstico e um tratamento. Isabel reafirma que o diagnóstico não está aí desde sempre na história da humanidade, e trata-se de um construção. Sendo que dependendo de como localiza-se atribui-se uma identidade que produz um tipo de tratamento. A especialista adverte que as repercussões são sérias na medida em que é muito difícil descolar da identidade do sujeito um diagnóstico psiquiátrico. Acrescenta que a psiquiatria utiliza a lógica da classificação que toma como base a biologia. Loucos passam a serem entendidos como categoria, no qual seu comportamento esquisito pode ser encaixado e requer uma administração para se ter uma sociedade melhor. Tal paradigma sustenta a higiene pública que está atrelada a perspectiva da eugenia.

                Isabel utiliza um pequeno trecho do filme Homo Sapiens 1900 (https://www.youtube.com/watch?v=TPSjjElIIZM) para explicar o conceito de eugenia, entendido  como um mecanismo de controle da seleção humana. Tal mecanismo divide-se  na eugenia positiva e a negativa. A primeira refere-se ao cruzamento das raças superiores para melhoria da raça e a última trata-se do impedimento das raças inferiores se reproduzirem. Refere-se a uma teoria que pretende justificar racionalmente a segregação e exclusão dos indesejáveis. As intenções de modelar o comportamento do outro, dos indesejáveis converte-se, segundo a especialista, em eliminar o outro. Sendo que a patologização é o processo de nomear como doença uma característica da identidade do sujeito. A divisão do normal e patológico intensifica-se, sendo importante compreender que a  preocupação do anormal é pela preocupação de manutenção da sociedade. É uma intervenção, portanto, de controle social que é política no sentido de produzir interferência ordem social. Há um processo de transformação em questões médicas questões que são sociais e políticas no qual deixa-se de considerar tudo que está acontecendo com aquele sujeito, descontextualiza-se o comportamento considerado esquisito e rotula-se com um diagnóstico.

                Neste processo de suprimir o comportamento desviante se impede de um pensar sobre si do modo filosófico, não se olha para o sofrimento e como este é produzido, o que incomoda e como afeta. A psicóloga salienta que quando se apaga a dimensão do sofrimento se apaga a dimensão do cuidado. Exemplifica que ao nomear alguém como deprimido não se pergunta ou se explora o que provoca e sim parte-se rapidamente para o tratamento. Instaura-se aí um processo de medicalização da vida. Não se pensa, portanto, o menino maluquinho como artista e sim como doente. Sendo que a intervenção de categorizar se pretende a-teorica e universal.

                Outro aspecto abordado pela especialista foi a materialização desta lógica psiquiátrica de categorizar que são os manuais como o Manual Diagnóstico e Estatístico de Doença Mental, DSM. A tendência observada no DSM é de  cada vez mais incluir mais comportamentos humanos como anormais, ou seja, se amplia progressivamente o que se atribui e categoriza-se como doença. Os sofrimentos humanos ficam cada vez mais atrelados a um rótulo na medida em que um sintoma não fala de quem é aquele que sofre. Um dos exemplos, trazidos por Isabel, é do luto patológico, que pelo DSM é quando a pessoa sofre por mais de 2 meses a perda de alguém por morte. Também problematiza o TDH e autismo como outras categorias psiquiátricas em que há um proliferação de diagnósticos.

                Isabel enfatiza a relação entre a patologização e a medicalização, além de abordar os efeitos semelhantes dos medicamentos psiquiátricos com as drogas ilícitas e das alterações tanto cerebrais como comportamentais que tais medicamentos produzem. Com uma abordagem provocativa, pergunta: A quem serve a medicalização? Em seguida acrescenta que transformamos problemas cotidianos em problemas mentais e que a indústria do diagnóstico sustenta a indústria de medicamentos.

                Ao final da sua fala, Isabel destaca o movimento de luta antimanicomial, que tenta construir outros formas de cuidado. Afirma, ainda que é importante pensar o cuidado de modo interdisciplinar, em rede. O diagnóstico nesta perspectiva de cuidado é como uma sondagem, como construção e não como rótulo. Defende, assim, o modelo de intervenção biopsicossocial em oposição ao modelo biomédico, ainda dominante. Além disso, reconhece o SUS como uma política pública que defende o deslocamento da doença para a saúde e permite o fomento da rede de atenção que olha para este sujeito. Retoma destacando o cuidado interdisciplinar e a escuta do sujeito com uma leitura do contexto como aspectos fundamentais para a sustentação da abordagem psicossocial. A palestrante interroga os participantes sobre o diagnóstico. “Diagnóstico para que? Está ajudando a olhar para potência do sujeito ou para o que ele não consegue, individualizando o seu sofrimento?”

  Para fechar sua fala Isabel apresenta um vídeo de Emerson Merhy sobre os desafios das práticas de cuidado em saúde (https://www.youtube.com/watch?v=Pa0HadRt5ns). E ao final do vídeo lança uma pergunta aos participantes. “ Suas práticas são punitivas ou são produtoras de vida?”