No dia 23 de agosto de 2021 foi realizada a oficina “Ritos de passagem - Chegadas e Partidas”, que contou com a participação das profissionais Valéria Tinoco, psicóloga, mestre e doutora em psicologia clínica pela PUC-SP, representante da IAN Brasil (International Attachment Network), e Dalizia Amaral, psicóloga, doutora e mestre em teoria e pesquisa do comportamento, especialista em psicologia social e psicopedagogia institucional e psicóloga do Espaço de Acolhimento de Crianças e Adolescentes em Barcarena - Pará.
Na abertura da oficina, Valéria contou um pouco de sua experiência profissional com os processos de luto e explicou a necessidade de se compreender que o processo de adaptação à nova realidade passa pelo processo de luto, relativo aos rompimentos e às perdas sentidas pelas crianças e adolescentes em situação de acolhimento. A compreensão desses rompimentos por parte de todos os envolvidos é a base para o acolhimento e para a possibilidade de formação de novos vínculos durante esse período. Valéria enfatizou que a formação de vínculos é essencial para toda a vida. É uma vivência de confiança e proteção e para isso não importa a duração do tempo de convívio. Ela comenta que em algumas instituições há uma postura de se evitar formar vínculos, uma vez que este duraria pouco tempo. Quando os vínculos não são valorizados, há o risco de algumas crianças e adolescentes ficarem bastante tempo acolhidas sem relações importantes. Valéria critica esse distanciamento, já que a experiência do acolhimento poderia ser uma oportunidade importante, muitas vezes a primeira, em que as crianças e adolescentes poderiam estar em uma relação de segurança, sendo ouvidas e atendidas de maneira sensível.
Segundo Valéria, muitas das crianças e adolescentes acolhidos viveram histórico de insegurança muito grande, sem relações estáveis, e têm dificuldades de confiar em outras pessoas e em si mesmas como merecedoras de amor e de cuidado. Ao chegar ao serviço de acolhimento, muitas apresentam senso de desorientação, estando amedrontadas e assustadas frente a uma situação nova e desconhecida. Há muitas perdas que uma criança e adolescente sofre quando é acolhida, como família, casa, brinquedos, cheiros, comidas, barulhos, hábitos, contato com vizinhos e comunidade e os lugares onde frequenta. Tudo o que era conhecido muda e ela tem que se adaptar a uma nova realidade. No início, o processo de adaptação é difícil, uma vez que é necessário viver primeiramente o processo de luto de tudo o que foi perdido. Quando se passa por estas situações é natural que expressem raiva, medo e tristeza em um primeiro momento, que são sentimentos ligados à insegurança. As crianças e adolescentes primeiro precisam elaborar o que deixaram para trás, para depois poderem se relacionar com o novo.
Valéria afirma a importância da função reflexiva, que permite que se possa perceber que há diferença entre o que o cuidador pensa e sente e o que a criança pensa e sente. É necessário perceber o que se sente e pensa, assim como o que o outro pensa e sente. O processo do acolhimento deve buscar tornar a experiência mais segura, menos traumática, através da criação de situações que possibilitem sentimentos de confiança e proteção. Quanto ao fim do acolhimento, este processo deve ser preparado desde o início. Em algumas situações, para a família acolhedora ou cuidadores, é difícil se separar da criança ou do adolescente que ficou sob seus cuidados, assim como também é difícil para a criança. Valéria afirma que “os sentimentos difíceis vão estar presentes, não é só alegria, há dor também”. Tratar do tema da continuidade do vínculo é muito importante para trazer segurança nas transições. O trabalho com as transições inclui tratar de todas as relações importantes na vida do acolhido, tanto passadas quanto futuras, assim como dar às crianças e adolescentes previsibilidade, rotina, respostas honestas e ajudar a lidar com expectativas de oscilação.
Na sequência, Dalizia Amaral apresentou como funciona a base teórica de seu trabalho no Espaço de Acolhimento de Crianças e Adolescentes em Barcarena, no Pará. Ela fala sobre a importância do projeto político pedagógico nos serviços e para tanto se utiliza da perspectiva sistêmica, com base no conceito de bioecologia de Urie Bronfenbrenner. Segundo esta visão, a entrada no serviço de acolhimento é uma transição ecológica, já que há mudança nas relações interpessoais, nas atividades e papéis que assumem. Segundo Dalizia, as situações de acolhimento por busca e apreensão são usualmente muito violentas, gerando traumas grandes. As crianças e adolescentes vêm tristes e assustados, não compreendendo a situação na qual se encontram. Dalizia enfatiza a importância dos ritos de passagem nesta situação.
O serviço de acolhimento deve estar preparado para fazer uma recepção afetuosa, com cada profissional apresentando-se pelo nome e apresentando o serviço de modo a minimizar a ansiedade de quem está sendo acolhido. O intuito deste trabalho é tornar o serviço de acolhimento uma parte da vida dos acolhidos, não uma suspensão da vida. É uma oportunidade de estabelecer vínculos saudáveis, de eles saberem que são importantes no mundo. O processo afetuoso prioriza a liberdade dos envolvidos e a criação dos vínculos, o que se mostra claro através dos inúmeros exemplos de carinho e reconhecimento recebidos pelos profissionais, como cartas e bilhetes que ressaltam a importância que seu trabalho teve na vida deles.
Cada acolhido tem seu Plano Individual de Atendimento (PIA) elaborado, respeitando suas questões individuais. Ele começa com uma frase da criança ou adolescente, que responde à pergunta “O que você quer dizer para o/a juíz(a)?”, que visa valorizar a voz e a participação deles. No processo de desligamento, é dedicado tempo às despedidas, que trazem consigo um misto de alegria e tristeza. O trabalho executado pelos profissionais e o vínculo construído continuam fazendo parte da história destas crianças e adolescentes mesmo após o desligamento do serviço e seu acompanhamento por pelo menos 6 meses, provando que a experiência vivida no acolhimento pode mudar tudo.
Em breve a oficina estará disponível na íntegra no canal do YouTube do Instituto Fazendo História!