Esse texto tem o intuito de compartilhar uma história, da árvore Baobá, que entrelaça as raízes das memórias esquecidas de nossa nação e, em grande medida, se relaciona ao histórico dos serviços de acolhimento no Brasil.
Este, tem origem no processo de aculturação das crianças indígenas, retiradas de suas famílias no período colonial. O desrespeito ao modo como nossos povos originários se relacionavam com a vida em sociedade, vindo daqueles que aqui chegaram, incutiu de maneira violenta um outro modelo de educar as crianças naquela época: longe de suas famílias, da natureza, do banho de rio e da sua liberdade em comunidade. Os indígenas foram obrigados a abandonar sua língua materna para falar o português, e, junto a isso, foram embutidos em sua cultura, novos valores civilizatórios, crenças e costumes muito diferentes daqueles que existiam nessa terra, até então.
De outro lado, temos também as populações negras escravizadas ao longo da nossa história. Ao desembarcar nos portos onde chegavam os navios negreiros, todos eram separados de seus entes queridos, como estratégia de dominação. Ficar distante dos vínculos familiares e daqueles que falavam a mesma língua, evitava uma possível rebelião. E antes de atravessar o oceano Atlântico, os escravizados eram obrigados a realizar uma espécie de ritual em torno de uma árvore chamada Baobá. Quando os portugueses chegaram ao continente africano, eles se aproximaram dos nativos e perceberam que havia uma dimensão sagrada e ancestral em torno dessa árvore.
Considerada por muitos, como uma espécie de árvore da vida, a identidade social africana de alguns povos é interpretada pela ideia de que as raízes do Baobá representam os ancestrais e as memórias da comunidade, enquanto o tronco, seriam as crianças e os jovens em crescimento. Estes, por sua vez, devem estar enraizados nessa camada profunda, densa e profícua da terra, para sobreviver as variações do tempo e seguir em direção ao ápice de suas vidas. Os galhos significam o amadurecimento e quando as folhas caem, retornando ao solo para alimentar as raízes, dão continuidade a um novo ciclo que recomeça. Sendo predominante nas regiões semiáridas de Madagascar, o Baobá carrega simbolicamente uma outra visão de ser humano, que se constitui a partir do nós, ao invés do eu, como no ocidente.
Enraizar-se, na cultura africana, é um direito fundamental do ser humano e a negação desse direito apresenta consequências graves para a vida em sociedade. Ao redor dessa árvore considerada sagrada, a comunidade se reúne para compartilhar conhecimentos que constituem a base de uma coletividade, a partir da qual cada indivíduo pode ir sedimentando-se no mundo. O valor que é dado às memórias é tão grande que envelhecer significava honrar e ser honrado por esses tesouros que permanecem escondidos e registrados dentro de cada um de nós.
Nossa história conta que toda vez que as africanas e os africanos iam embarcar no navio negreiro, para serem escravizados no Brasil, eles eram obrigados a realizar um ritual de desenraizamento em torno dessa árvore. As prisioneiras e prisioneiros que eram crianças, jovens e adultos, caminhavam longas distâncias a pé durante a noite, para que a escuridão as impedisse de encontrar o caminho de volta, caso tentassem fugir. Quando chegavam ao forte, ficavam acorrentadas (os) até que fosse realizado um leilão para saber quem seria o comprador daquelas pessoas. E antes de embarcarem, eram obrigados a dar voltas em torno do Baobá, forçados a deixar aquela terra natal e toda sua história. A ordem era para que as mulheres dessem sete voltas e os homens nove. Ao destituir esses povos de seus vínculos e memória, esse rito garantia a submissão dos mesmos, pois renegar os ancestrais ao redor daquela árvore, significava perder todo referencial de pertencimento para tornar-se objeto na mão de alguém. Por causa disso, o Baobá passou a ser chamado também de árvore do esquecimento.
Infelizmente, esse desenraizamento continua presente no modo como fomos constituindo nossa sociedade e a memória esquecida desses povos historicamente prejudicados garantem o funcionamento desse sistema perverso e desigual. O respeito à história e o direto à verdade, como base para o trabalho nos serviços de acolhimento, garantido pelo ECA, é uma luta legitima e uma dívida histórica que merece reparação e cuidado. Considerando que a maior parte dos (as) acolhidos (as) são afrodescendentes, esse ritual de desenraizamento não deve mais se repetir ao longo das gerações.
Portanto, o valor dado a cada história nesse contexto, pode ser considerado também um ato político daqueles que se dedicam a área social. Se abrir para a realidade de cada criança, adolescente ou família, reconhecendo-as como um fruto desse processo civilizatório cruel e opressor, é fundamental para esse trabalho. Essa percepção nos conduz a criar práticas e estratégias no cotidiano que servem como pequenos rituais de enraizamento, transformando os frutos da árvore do esquecimento em histórias que ressoam uma versão mais potente de todos nós.
Sugestões de rituais de enraizamento que os serviços de acolhimento podem promover:
- Desenvolver diálogos, leituras e atividades que permitam a valorização das memórias das crianças e adolescentes no serviço de acolhimento;
- Possibilitar momentos de registros nos álbuns das crianças e adolescentes (ver metodologia do Programa Fazendo minha História); https://static1.squarespace.com/static/56b10ce8746fb97c2d267b79/t/56bcc5567da24f4faa269479/1455211873350/guiafmh.pdf
- Levar em consideração cada detalhe que a criança, adolescente ou família, considera importante em sua história;
- Investigar a fundo as raízes esquecidas da história familiar do (a) acolhido (a), tomando o cuidado de devolver e compartilhar entre os membros as informações levantadas;
- Considerar as chegadas e despedidas como um ritual de passagem importantíssimo dentro da rotina do serviço de acolhimento. Construir em equipe, ações que sejam significativas para os (as) acolhidos (as) e permitir um reconhecimento amoroso e respeitoso dos afetos que cada indivíduo mobiliza no grupo.
Elaine Moraes – psicóloga e consultora do programa de Formação
Parte desse texto foi retirado da tese de doutorado da autora, cujo título é GRIOT DIGITAL: RESSIGNIFICANDO A ANCESTRALIDADE AFRO-BRASILEIRA NA EDUCAÇÃO (USP/2020). As referências dessa história da árvore Baobá, constam na pesquisa.
https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-16022021-110956/pt-br.php