Nos tempos sombrios,
Se cantará também?
Também se cantará
Sobre os tempos sombrios.

 Bertolt Brecht

 O Grupo nós é um dos programas do Instituto Fazendo História, que apoia adolescentes entre 15 e 21 anos com experiência de acolhimento na sua transição para a vida independente, fora das instituições de acolhimento, auxiliando-os na busca por trabalho, cidadania e moradia.

Em março de 2020 realizamos nosso último encontro presencial com o Grupo Nós antes do início do isolamento social determinado pela pandemia de Covid 19. Depois disso, a incerteza foi a tônica dos nossos passos. Até quando? O que fazer para seguir com o trabalho de grupo? Foi no acompanhamento individual dos/as adolescentes que vieram os maiores desafios: como seguir presentes? Como fortalecer o apoio uma vez que o sofrimento era ainda maior?

Presenciamos jovens saindo do acolhimento da noite para o dia, em um tempo já incerto, de dúvidas e temores agravados pelo contexto da pandemia. Não podiam mais ver os seus. Não podiam encontrar, abraçar, visitar; nenhum conforto social para atenuar a separação brusca da casa e das pessoas com quem moravam até então. Vivemos silêncios, ausência de respostas. E nos estruturamos para seguir, equilibrando nossos próprios medos para continuar sendo apoio e referência.

Desde o início do trabalho buscamos parcerias em nossos contatos, e partilhar nossas redes também significou apoiarmo-nos em nossos afetos e caminhos pessoais. Encontrar uma resposta generosa foi muito mais possível quando seguimos por essa trilha.

Firmamos parceria com a empresa Carlotas[1], que realizou encontros com a equipe e com o grupo de jovens para falar sobre saúde emocional, instrumentalizando as técnicas com recursos e ferramentas preciosos, validando o acolhimento, o afeto e o auto-cuidado como estratégias de resistência em tempos sombrios. Abrimos espaço para diálogos transformadores dentro da equipe, o que nos fortaleceu para criar e resistir, olhando para as dores dentro de nós e encontrando brechas e braços para resistir.

Para conversar sobre carreira e projeto de vida, encontramos profissionais das áreas de interesse dos/as jovens e mediamos conversas; o sucesso dessa troca foi altamente influenciado pela proximidade do interlocutor da realidade do jovem e por sua capacidade de empatia. Conectamos ao grupo veterinárias, tatuadoras, arquitetas, professoras de educação física, profissionais do futebol, defensores públicos, nutricionistas, chefes de cozinha, artistas, capoeiristas, professoras de dança e doulas.

Vimos a vida se renovar com as jovens mulheres que se tornaram mães nesses dois anos e encontramos no Coletivo Feminista uma escuta atenta que acolheu algumas necessidades das jovens do Grupo. Ao longo do ano, agregamos um escritório de advocacia e uma médica da família às parcerias.

Acompanhamos, distantes física, mas não afetivamente,  momentos de experimentação culinária na República Jovem: fomos o sorriso no celular em cima do balcão da cozinha aplaudindo o preparo da lasanha.

Fomos ponte entre jovens de turmas anteriores e da atual em conversas sobre ingresso na universidade e seus desafios e belezas. Tratamos de racismo, meritocracia e exclusão, mas também de potência, resistência e instrumentalização. Nunca tivemos tantos jovens do Nós cursando uma faculdade como na turma atual.

Assistimos documentários e trocamos dicas de filme, construímos linhas da vida e de metas no Padlet [2], criamos árvores genealógicas, investigamos o passado apoiando-nos na ancestralidade. Aprofundamos as estratégias de enraizamento iniciadas antes da pandemia. E vimos nascer empreendedoras e redes de apoio na turma.

Em grupo, os primeiros encontros foram emocionantes, uma profusão de manifestações de carinho, saudades e de acolhimento entre os/as participantes. Mas o isolamento social se estendeu para além do que esperávamos e precisamos nos reinventar. Criamos jogos com roleta[3] em que a turma era ludicamente convidada a interagir com diversas perguntas, utilizamos técnicas de facilitação criativa[4] em brincadeiras que convidavam a abrir a câmera (nosso desafio maior do encontro online), nos apoiamos na cartografia[5] para conduzir investigações dos territórios e memória por meio de áudios, vídeos e pesquisas escritas.

Inserimos o corpo na conversa: trouxemos uma artista da dança do Rio de Janeiro para dar aula de Afrofunk [6] para o grupo de adolescentes e artistas da comunidade de Santa Inês[7], na zona leste de São Paulo, para cantar e rimar, convidando ao improviso das mãos e da voz.

Assistimos a um espetáculo de marionetes, recebemos jovens poetas do Movimento Cultural Ermelino Matarazzo[8] em uma conversa intermeada por suas apresentações artísticas, criamos um sarau convidando a turma a se manifestar em músicas, imagens, textos ou poesias.

Validamos a arte como canal de expressão fundamental em tempos tão doídos e solitários. E o que é a arte, senão fazer amor com a vida? Amor como encontro poético-afetivo, mas também como um agarrar-se visceralmente ao que é vivo e pulsa para sobreviver? Encontrar espaço para o grito e o prazer, a fragilidade e a força de sermos humanidade?

Nos longínquos tempos de pesquisa na universidade de Artes Plásticas, lembro de me deparar com um livro em que Kenneth Clark citava o amor como qualidade do olhar do artista que retratava um coelho, e isso resultava em imensa riqueza de detalhes e beleza na obra. Pois o amor como estratégia de trabalho é esse cuidado no olhar, atenção ao outro e seu estar no mundo com total respeito e reverência. É aprender que cuidar de si é cuidar do outro, lição tão repetida nesses tempos. O que fica desse duro aprendizado dos quase dois anos que se passaram é o que permitimos transformar-se em nós: o viver profundo pede passagem, e ele vai muito além da burocracia da vida. É preciso trilhar outros sentidos, nem tão novos assim, e sim ancestrais, comunitários, eco pedagógicos, cooperativos, prazerosos, e por que não, amorosos.

No momento em que escolhemos amar, começamos a nos mover contra a dominação, contra a opressão. No momento em que escolhemos amar, começamos a nos mover em direção à liberdade, a agir de formas que libertam a nós e aos outros.

 

O amor é uma combinação de cuidado, compromisso, conhecimento, responsabilidade, respeito e confiança.

 

bell hooks

 

P.S:  No dia 13 de novembro de 2021 realizamos nosso primeiro encontro presencial do grupo pós-pandemia, em que reencontramos a turma que acompanhamos desde 2018/19 e conhecemos alguns jovens que iniciaram o processo ainda online. Seguiremos em formato híbrido, tomando todos os cuidados necessários.

Fernanda S. Guimarães, arte educadora e técnica do Grupo nós


[1] https://www.carlotas.org/BR/educacao

[2] Ferramenta online que permite a criação de um mural ou quadro virtual dinâmico e interativo para registrar, guardar e partilhar conteúdos multimídia. Funciona como uma folha de papel, onde se pode inserir qualquer tipo de conteúdo (texto, imagens, vídeo, hiperlinks) juntamente com outras pessoas. https://pt-br.padlet.com/

[3] https://app-sorteos.com/pt/apps/girar-roleta-aleatoria

[4] https://partnersforyouth.org/training/certification-training/

[5] https://saladeimprensa.ces.uc.pt/?col=canalces&id=24122#.YYnFu57MLIU

[6] https://noticiapreta.com.br/a-danca-como-experiencia-ancestral-a-atuacao-do-afrofunk-rio-na-descolonizacao-do-corpo/

[7]https://www.sescsp.org.br/online/artigo/15132_GRUPOBATAKERE+DA+COMUNIDADE+SANTA+INES+EM+ERMELINO+MATARAZZO

[8] https://www.instagram.com/movimentoculturalem/?hl=pt-br