A disseminação do novo coronavírus (Covid-19) e a declaração pública do estado de pandemia em março de 2020 exigiu que o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) não apenas mantivesse o funcionamento regular de serviços e programas socioassistenciais voltados à população em risco social, mas buscasse formas de mitigar os efeitos da situação de emergência em saúde pública em um trabalho articulado com o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema de Justiça.
Nesse contexto, os serviços de acolhimento para crianças e adolescentes mantiveram seu funcionamento regular, em todo território nacional nas modalidades: abrigo institucional, casa lar e famílias acolhedoras. Os riscos de transmissibilidade da doença associados ao caráter coletivo da grande maioria destes serviços e ao fluxo diário de profissionais, exigiu a adoção de medidas emergenciais de reorganização.
Tais providências incluíram orientações específicas para o acolhimento de crianças e adolescentes e, recomendações quanto a medidas e procedimentos relacionados para prevenir a disseminação do vírus, e mitigar riscos relacionados à Covid-19 nos Serviços de Acolhimento do país, incentivando-se adaptações necessárias às características locais. (BRASIL, 2020d)*
Não foram poucos os desafios e as necessidades de adaptação das equipes de trabalhadores dos serviços de acolhimento. Nesse sentido, as orientações também preconizaram formas de cuidado para os cuidadores, incluindo atenção à saúde mental, para além da física, por meio de “canais de diálogo remoto entre os trabalhadores, para compartilhamento das dificuldades, dúvidas, troca de experiências e apoio mútuo” e “estratégias de suporte emocional especializado, como conexão com redes de psicólogos para atendimento remoto”.
Em consonância a essas orientações de cuidado, o Instituto Fazendo História mobilizou e organizou sua rede de psicólogas e psicanalistas voluntárias para oferecer a Roda Aberta – um espaço virtual de escuta para profissionais do Acolhimento no contexto da pandemia e do isolamento social por ela imposto. Compartilhamos neste texto o registro da rica experiência de cuidado e atenção aos profissionais do acolhimento vivido nas rodas. Oferecemos aqui um relato do que eles nos convidaram a refletir sobre os efeitos da pandemia, tanto aqueles que emergem do desamparo frente ao desconhecido, quanto de desamparos antigos e recorrentemente silenciados.
Roda Aberta – um convite ao diálogo
A Roda Aberta foi uma ação realizada entre abril e dezembro de 2020, por um grupo de supervisoras clínicas e a coordenadora do programa de psicoterapia Com Tato do Instituto Fazendo História**. A iniciativa consistiu em um espaço virtual oferecido aos profissionais dos serviços de acolhimento para escuta de possíveis sofrimentos decorrentes desse contexto tão incerto e assustador.
Uma roda aberta a quem quisesse participar, para acolher angústias, fantasias e temores. Enfim, um espaço e um tempo para falar entre pares sobre o que vinham enfrentando em seus cotidianos, contando para isso com a mediação de um terceiro, estrangeiro a essa realidade e em condições de facilitar a circulação da palavra.
Desde as primeiras rodas, ficou claro o grande alcance que o formato virtual teria em termos de romper a barreira geográfica e acessar pessoas em todo o território nacional. Das 492 inscrições realizadas entre abril e dezembro de 2020, a maior participação foi de profissionais do estado de São Paulo (46,54%), sendo 13% da capital paulista. Quanto aos profissionais que estiveram presentes nas rodas, a maior parte foi composta pelas equipes técnicas (55%). A presença de menos educadores (36,7%), mesmo eles sendo proporcionalmente a maioria nos serviços, sugere a dificuldade adicional de acesso a espaços de cuidado para essas pessoas, especialmente no modelo virtual.
Nas primeiras rodas, os relatos traziam o impacto e o susto da situação imposta. A ameaça de contaminação deles próprios e de suas famílias, aliada à pouca estrutura de proteção oferecida por muitas instituições, foram nomeadas e pensadas conjuntamente. Muitas vezes os participantes se referiam às rodas como um espaço de reconhecimento e legitimação de suas práticas, de acolhimento de angústias e de trocas muito ricas de experiências institucionais. Para alguns, a nomeação grupal da angústia frente à reação das crianças, adolescentes e adultos, especialmente em relação às manifestações mais contundentes de raiva como expressão do sofrimento, dava um primeiro contorno com palavras para o excesso circulante.
Nas rodas abertas, dúvidas e temores se apresentavam numa pluralidade de temas e situações desafiadoras, permeadas de medo e angústia. O isolamento social imposto pelo risco de contágio produziu um (re)encontro com aspectos do acolhimento, presentes muitas vezes de forma velada. Os não ditos da medida de proteção, naquilo que ela paradoxalmente encerra de rupturas, isolamento e estigmatização, puderam ganhar palavra de forma deslocada nos relatos das rodas. A pandemia configurou-se em um estranho, bastante familiar.
A medida protetiva que se propõe como garantia de direitos, fundamentalmente o do convívio familiar e comunitário, parecia às voltas com seus maiores desafios. Falar da pandemia e de seus efeitos, permitia falar sobre isolamento, lutos, rupturas e perdas de convívio, temas presentes no cotidiano do acolhimento. Estratégias inventivas para lidar com a falta de contato pessoal com familiares, professores, colegas de escola, padrinhos afetivos, poderiam afinal ser incorporadas ao trabalho rotineiro das equipes, ampliando possibilidades para além da pandemia. O contato virtual, por carta, à distância no portão estiveram entre os relatos do esforço de se fazer presente. Em outros casos, o afastamento e silêncios aprofundaram distâncias sombrias de um isolamento já conhecido.
O medo de contato, do contágio e da doença também, por deslocamento, carregava aspectos delicados dos estigmas silenciados e que permeiam a vida no acolhimento. “Ter contato é perigoso”. O uso (agora concretamente necessário) de equipamentos de proteção, como máscaras, luvas e álcool em gel, deixava marcas na comunicação, no contato e no convívio entre profissionais, crianças, adolescentes e familiares. Incertezas de diversas ordens sobre como se proteger do vírus e da doença, também falavam do horror do encontro com o desamparo humano.
O desamparo aparecia também expresso no cansaço com a rotina exaustiva, pelas demandas advindas da própria pandemia, mas que revelavam algo mais da precariedade já conhecida no trabalho da assistência. Somava-se à falta de pessoal, agravada por licenças médicas, novas demandas. Atividades escolares (excesso, falta, perda de conteúdo) foram constantes nas rodas. Educadores sociais, muitas vezes sem o conhecimento necessário, se viram envolvidos diretamente nas atividades escolares de crianças e adolescentes, mesmo sem equipamentos suficientes e/ou adequados para acesso às aulas on-line.
O sofrimento de jovens e adolescentes, impedidos de circularem além dos muros da instituição e de receberem visitas, foi um outro ponto muito presente nas rodas. A dificuldade de sustentação de regras e limites, diante da restrição do contato social; a necessidade de se construir novos acordos que pudessem ser respeitados e que preservassem tanto a saúde dos adolescentes quanto dos demais; as fugas, problemáticas sexuais, bem como situações extremas de difícil manejo estiveram presentes em muitos relatos.
Também foram relatadas dificuldades para estabelecer e/ou manter parcerias entre profissionais das equipes, com a gestão do serviço e até mesmo com diferentes agentes da rede de cuidado, como os técnicos do judiciário, dos equipamentos de saúde e das escolas.
Apareciam nas rodas um aumento das dificuldades nos processos de reintegração familiar e de adoção, ora por acelerações preocupantes, ora por paralizações do trabalho de aproximação entre as crianças e as famílias. Também foram ouvidos os efeitos do aumento das incertezas e interrupções nos processos e projetos de construção de autonomia, particularmente para os adolescentes que estavam em vias de sair do serviço de acolhimento.
Nesse sentido, as rodas, ao promoverem a escuta do desamparo, abriam espaço para legitimar a necessária elaboração do sentimento de impotência e de tantos lutos. Abria-se, ao mesmo tempo, a possibilidade de reconhecer, em meio a tantas incertezas e dúvidas sem respostas, recursos disponíveis e esperança.
Foi muito rico testemunhar a diversidade dos serviços pelo Brasil. O modelo virtual permitiu o encontro de pessoas e trocas de experiências de profissionais de todos os cantos e regiões. O interesse com o qual se ouviam e a tentativa de transposição de realidades foi um exercício ao vivo e em cores do trabalho com a diferença. Desde condições materiais até a estrutura de retaguarda para os equipamentos de cuidado, mas também as diferenças culturais, permitiram uma certa posição estrangeira frente a um trabalho bastante familiar. Esta condição foi responsável, em alguns encontros, pelo surgimento de uma força de subversão daquilo que é rotineiramente visto e escutado. Ou seja, um par que desde fora, mas também de dentro, podia apontar para necessidade de resgatar o sofrimento das crianças e adolescentes. Este resgate desmontava a defesa frente ao sofrimento dos acolhidos, desvelando algo para além dos problemas causados e retomando a condição de desamparo vivido por todas e todos.
Tão logo o grande impacto do nonsense dos primeiros meses arrefeceu um pouco, e que aquela vertigem inicial foi sendo minimamente compreendida, as rodas foram se concentrando nos grandes e conhecidos temas dos serviços de acolhimento: sexualidade dos adolescentes, conflitos entre equipe técnica e educadores, dificuldade do trabalho com as famílias, brigas entre os acolhidos, angústias ligadas ao cotidiano do trabalho. Observamos a presença recorrente de algumas pessoas, num movimento de busca por uma interlocução sobre problemas cotidianos e precarização do trabalho. Algo que remetia a uma busca por um tipo de supervisão ou qualificação profissional, não previstas na proposta das rodas. A pandemia intensificava questões já presentes, deixando uma inquietação sobre a ainda presente dificuldade em abrir espaços de escuta para o sofrimento dos trabalhadores dos serviços de acolhimento.
A Roda Aberta foi uma aposta na possibilidade de fazer a palavra circular e transformar pânico, perda, luto, apreensão, dificuldades e angústias, em possibilidades de ousar pensar num futuro. Foi a constituição de uma oportunidade reflexiva muito além do exercício racional de pensar situações problema. Estávamos imersos numa condição de extrema fragilização, mas simultaneamente em posição – não planejada ou programada – de estrangeiros frente ao cotidiano, o que, em algumas ocasiões, abalou positivamente um imaginário acerca de um fazer de todo o dia.
*BRASIL. Secretaria Nacional de Assistência Social Secretaria Especial de Desenvolvimento Social Ministério da Cidadania. Informativo sobre a Nota Técnica SNAS nº 11/2020. Brasília, 24 de abril de 2020g. Disponível em: <https://www.mpba.mp.br/sites/default/files/biblioteca/crianca-e-adolescente/coronavirus_-_material_tecnico/informativo_snas_nota_tecnica_acolhimento_criancas_adolescentes_portaria59_2020.pdf>. Acesso em: 15 mai. 2021.
** A Roda Aberta foi realizada por: Ada Morgestern, Ana Raquel Ribeiro, Clarissa Temer, Daniele Pisani Freitas, Isabel da Silva Kahn Marin, Laura Miranda Canhada, Luciana Bocayuva Khair Junqueira, Maria Engracia Garcia Perez, Renate Sanches e Tatiana Inglez-Mazzarella.
Ana Raquel Ribeiro, coordenadora do programa Com Tato
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