O texto a seguir é uma troca de mensagens do grupo Acolhimento em Rede , grupo de e-mails que reúne profissionais de vários estados do Brasil e das mais diversas formações e funções na rede de proteção à criança e ao adolescente.
“Bom dia colegas, estamos com dificuldades em convencer os adolescentes a permanecerem em casa…mesmo com todo o diálogo e informações eles seguem saindo de casa sem autorização”. Essa foi a mensagem, enviada por Clarissa Trevisan que deu abertura à discussão no grupo, com o tema “Como lidar com os adolescentes”. Clarissa escreveu sobre a situação que tem vivenciado no abrigo onde trabalha, disse que apesar dos procedimentos de prevenção contra o COVID-19, o abrigo está aflito, principalmente pelo fato dos sintomas levarem alguns dias para surgirem, o que faz com que seja mais facilmente transmitido. “Como estão lidando com estes adolescentes que seguem circulando na rua? Pensam em alguma atitude mais drástica? Mantê-los em local específico? Com maior restrição de saída?” foram as perguntas que deram fim ao seu e-mail.
Adriana Simões, coordenadora da Casa da Criança, também se juntou a conversa e conta que está vivenciando uma situação semelhante à de Clarissa. Segunda ela, a orientação que receberam era que “ao chegarem (os adolescentes), o educador encaminha para o banho (faz todo o recomendado quanto a higiene), o adolescente fica num quarto sozinho para dormir e passa a usar máscara, pois teve contato externo”.
A psicóloga Aparecida Araújo, continuou o debate: “Estou acompanhando os relatos e gostaria de saber como deixar o adolescente num quarto sozinho? Vocês podem descrever qual ou quais as abordagens utilizadas por vocês para conscientizar os adolescentes? Eles geralmente saem em grupo, o grupo será colocado em um quarto separado?”.
Renato Fonseca tomou parte da discussão acrescentando que o momento em que vivemos é único e por isso deve-se tomar decisões. “É fato que os adolescentes vão ter dificuldade em ficar e cumprir o isolamento”. Para ele, a dificuldade de manter os adolescentes em casa é algo recorrente, e nesse momento de pandemia, nasce a dúvida de como acolher e proceder. “Precisamos acolher, mas não podemos nos furtar da imposição de limites. Sobretudo quando falamos do momento em que vivemos e os riscos da contaminação das outras crianças e também dos profissionais”.
Tendo a situação em vista, Renato afirma que, regras claras estão sendo criadas pelos serviços, “assim será necessário que os abrigos criem uma opção de quarto separado. Creio que não haja outro caminho. O risco é muito grande para colocarmos bebês e demais crianças e adolescentes em risco”.
Renato lembra que, além dos adolescentes, ainda existe a preocupação com os bebês, e que neste momento a melhor opção de acolhimento seria o serviço de Famílias Acolhedoras, para ele, mais do que nunca precisamos mobilizar a comunidade.
Voltando a pergunta inicial de como lidar com os adolescentes acolhidos nesse contexto de isolamento e pandemia, primeiro é necessário entender um pouco mais sobre o que caracteriza a adolescência e como os jovens vivem esse momento de vida. Para isso, é importante ir além das aparências!
A adolescência [1]se caracteriza por ser um período da vida marcado por mudanças significativas e intensas. Nessa fase, atravessada por questões de classe, raça, gênero e outras, acontecem algumas perdas importantes, que transformam o modo como o jovem se reconhece e se coloca no mundo. Ele perde o corpo da infância e ganha um novo corpo, que se transforma rapidamente, produzindo mudanças na autoimagem e autoestima. Perde os pais da infância porque, diferente do ideal infantil, os adultos de referência passam a ser vistos como aqueles que falham, que não são mais tão poderosos e podem ser questionados. Os sonhos fantasiosos e desejos de criança são substituídos por outros que ganham intensidade e passam, ao longo dessa etapa da vida, a serem confrontados com os limites da realidade e de si mesmo.
É o tempo de vislumbrar quem é e quem se deseja ser, pautado em novos parâmetros que exigem maior responsabilidade e a superação dos comportamentos infantis. É, portanto, um tempo de intenso trabalho emocional, no qual sentimentos como angústia, insegurança e solidão permeiam o modo como o adolescente se expressa na busca por seu lugar no mundo.
Nesse processo de desenvolvimento, o adolescente busca outras experiências e referências fora do núcleo em que está inserido, seja familiar ou de acolhimento. Nessa fase, o grupo de amigos, as tribos, as relações amorosas e as manifestações culturais tornam-se referências fundamentais, pois encontra, através deles, o sentido de pertencimento, de identificação, igualdade e aceitação.
Ao mesmo tempo, é comum que o jovem ‘teste’ tudo e todos, desafiando tanto a autoridade dos adultos como os próprios limites individuais. É, também, através da oposição que ele constrói sua identidade. A descoberta do que ‘não sou’ é um grande passo na definição de ‘quem sou’.
Essas transformações, com frequência, geram frustrações e sentimentos hostis nos adultos responsáveis pelos adolescentes. O que é dito pelo adulto aparentemente nem sempre é ouvido e a oposição do jovem costuma ser a primeira reação. É comum o embate de argumentos que mais afasta do que aproxima. Ao adulto (que já foi adolescente!) resta buscar entender esse momento de transição, dar apoio, ouvir e orientar, considerando que o que viveu e aprendeu em sua adolescência não é necessariamente aquilo que faz sentido para esse adolescente com quem convive. Cabe aos adultos esse movimento de aproximação.
A adolescência é o momento em que escolhas começam a ser feitas, também, através de análise, considerações e ponderações, revelando crescimento e capacidade de se colocar enquanto sujeito. Esse processo, que começou bem antes com a tomada de pequenas decisões pelas quais se responsabilizou, se refere a conquista de autonomia.
O adolescente precisa de ajuda para perceber que suas ações no presente constroem seu futuro. Um desafio refere-se ao significado do tempo para o adolescente. Ele é imediatista: tudo é agora. Para o jovem é difícil tolerar a espera por resultados e visualizar as pequenas conquistas. O adulto que acolhe e mostra isso pode auxiliá-lo a ‘aprender a esperar’, ao estabelecer e discriminar, com ele, objetivos a curto, médio e longo prazo.
A partir dessas reflexões, podemos pensar que para os adolescentes será especialmente difícil a vivência do isolamento social, já que não podem ir à escola, encontrar os amigos em grupo e ter vivências fora do serviço de acolhimento. No esforço de conter a epidemia e garantir a saúde dos profissionais e crianças, muitos serviços de acolhimento estão limitando ou mesmo cancelando as visitas de familiares e de voluntários, figuras de referência e de afeto para esses jovens. Além disso, como o jovem vai testando os limites, muitas vezes tem dificuldades em calcular os riscos de suas ações. Alguns podem ter a postura de minimizar os efeitos da pandemia e os riscos que correm ao sair na rua.
Imaginem-se vivendo em uma casa com até 20 crianças e adolescentes, com poucos ou as vezes nenhum espaço de privacidade. Tendo que dividir os espaços e as opções de lazer, televisão, computador, jogos e brinquedos. Muitas vezes com acesso limitado a internet e celulares. Não parece algo fácil, certo?
Diante disso, quais estratégias os serviços podem lançar mão para conscientizar e responsabilizar os adolescentes, ao mesmo tempo que acolhem e os ajudam a superar esse momento de crise?
Em primeiro lugar é necessário que cada adolescente seja acompanhado em sua trajetória pessoal por adultos que entendam seu processo. Cada um vai reagir às imposições de isolamento de uma maneira muito particular. Nesse sentido, conversas individuais com cada adolescente são necessárias, eles precisam sentir que os adultos se importam verdadeiramente com eles.
Ter uma rotina bem estabelecida com atividades variadas para todas as idades é fundamental. Assim como incluir atividades fora do comum e gostosas, como noite de filme com pipoca, jogos de tabuleiro, fazer pizza ou algum prato diferente juntos.
Sabemos que é um desafio organizar a rotina e os espaços de um serviço com 20 crianças e adolescentes, mas na medida do possível é interessante criar momentos só para os adolescentes da casa, para que eles possam ver os filmes de seu interesse, jogar jogos mais desafiadores, ter seu tempo com os educadores ou mesmo só aproveitar a televisão sem a interrupção das crianças menores!
Os profissionais devem apoiar, e oferecer suporte emocional nesse momento difícil para todos: realizar rodas de conversas diárias em um horário pré-determinado pode ser uma boa estratégia para falar sobre:
Os sentimentos de cada um, angústias e medos;
As notícias sobre o corona vírus, o que sabem, dúvidas e fantasias, e como se proteger;
A rotina da casa, pensar em conjunto em como organizar o dia, atividades interessantes para fazer;
Temas variados e de interesse dos jovens.
Outro ponto bem importante é que o serviço possa garantir que os jovens continuem se comunicando com as pessoas de fora da instituição, com as quais tem vinculo, sejam seus familiares, amigos ou outros. Através de telefonemas diários, uso do whatsapp, redes sociais ou mesmo cartas! Os jovens, como todos nós, também precisam se sentir conectados mesmo na distância.
Para saber mais sobre o tema da adolescência em serviços de acolhimento acesse nossa publicação Adolescentes em transição: O TRABALHO DE PREPARAÇÃO PARA A VIDA AUTÔNOMA, FORA DAS INSTITUIÇÕES DE ACOLHIMENTO.