Nas últimas décadas, diversos estudos evidenciaram a importância dos cuidados na primeira infância para o desenvolvimento cognitivo e emocional dos seres humanos. Essa fase passou a ser compreendida como uma etapa fundamental, tendo se tornado foco de políticas públicas, visto que as experiências dos primeiros anos influenciam diretamente o desenvolvimento biopsicossocial nos estágios posteriores da vida.
A preocupação com este período da vida também se volta para as crianças que precisaram ser separadas de suas famílias devido a diferentes violações de direitos. Quais os cuidados necessários para o desenvolvimento de bebês que estão privados dos cuidados parentais? Como garantir a atenção e necessidades na primeira infância quando as crianças precisam permanecer em instituições?
Já no final da década de 40 do século passado, pesquisadores como René Spitz observavam os efeitos do processo de institucionalização no desenvolvimento dos bebês. A partir do trabalho em um grande orfanato, o psicanalista identificou a chamada “síndrome do hospitalismo” caracterizada pela crescente apatia dos bebês que chegavam a perder o apetite, tinham prejuízos em seu desenvolvimento global e chegavam a morrer. Tal fato estava diretamente relacionado à ausência de uma figura de referência capaz de prover afeto e a constância dos cuidados necessários para o desenvolvimento dessas crianças.
O Projeto de Intervenção Precoce de Bucareste (PIPB), que teve início em 2000, diagnosticou que a institucionalização precoce gera profundos déficits na cognição e em importantes aspectos do desenvolvimento socioemocional. A pesquisa também acompanhou a transição de crianças do ambiente institucional para o acolhimento familiar e constatou melhoras significativas, estando o grau de recuperação diretamente relacionado ao tempo que as crianças permaneceram institucionalizadas – geralmente as que saem antes dos 2 anos têm resultados melhores do que aquelas que saem mais tarde.
Preocupada com a institucionalização de crianças até 3 anos na América Latina e Caribe, o Unicef liderou a campanha “Fale Por Mim”, que apresenta dados alarmantes baseados na experiência de Bucareste, tais como:
A cada ano que um bebê ou criança pequena passa em uma instituição, perde quatro meses de desenvolvimento saudável;
Acontece seis vezes mais violência em instituições do que em famílias;
Há três vezes mais abuso sexual nas instituições do que no cuidado de famílias;
As crianças pequenas são as mais vulneráveis em todas estas situações.
Apesar da importância dessas informações, salienta-se que quando o estudo foi iniciado, as instituições Romenas – onde a pesquisa foi conduzida – eram similares aos antigos orfanatos brasileiros, acolhendo centenas de crianças.
No Brasil, o encaminhamento para um serviço de acolhimento (abrigo institucional, casa-lar e família acolhedora) deve acontecer somente quando não houver possibilidades para permanência da criança em sua família de origem. A despeito de haver profundos e significativos avanços nas modalidades de acolhimento institucional em nosso país, há aspectos intrínsecos do processo de institucionalização que afetam diretamente as crianças, especialmente as que estão na primeira infância.
A rotatividade constante de funcionários e o fato de haver múltiplas demandas no cotidiano das instituições comprometem a manutenção de um ambiente estável e o estabelecimento de vínculos duradouros. Nesse sentido, desde 2009 o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) preconiza que o serviço de acolhimento familiar é uma política pública prioritária dentro das medidas protetivas de acolhimento.
As famílias acolhedoras têm como objetivo estimular a construção de vínculos afetivos individualizados e proporcionar um atendimento personalizado, de modo a garantir o desenvolvimento global da criança. Apesar do reconhecimento de que esta modalidade deve ser prioritária, apenas 4% das crianças e adolescentes em medida de proteção encontram-se em acolhimento familiar. Segundo dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) de 2020, existem 1.366 crianças em famílias acolhedoras nas 5 regiões brasileiras, havendo 32.791 em acolhimento institucional. Na região Sudeste, há 485 crianças em acolhimento familiar e 16.056 em acolhimento institucional. Em países como Austrália e Canadá, quase 100% das crianças e adolescentes afastados de suas famílias estão em acolhimento familiar. Na Colômbia, esse percentual já atinge 70%.
Por que então no cenário nacional ainda há uma primazia do acolhimento institucional em detrimento das famílias acolhedoras? Esta não é uma questão simples. Sem dúvida que ainda há em nossa sociedade reflexos de uma lógica menorista que apostava na internação de crianças em instituições para corrigir “comportamentos desviantes” e “reeducá-las”. É necessário então haver uma profunda mudança cultural, que precisa vir acompanhada de mais informação sobre essa modalidade de acolhimento para a rede socioassistencial, sistema de justiça, executivos municipais e sociedade em geral. Também é preciso investir em capacitação para que os gestores municipais e equipes técnicas possam implantar e acompanhar a execução qualificada desse serviço.
Acreditamos que a experiência exitosa do Instituto Fazendo História, em São Paulo, evidencia que é possível inverter a atual pirâmide do acolhimento no país. Implantado em 2015, o serviço em famílias acolhedoras surge do desejo de contribuir com políticas adequadas para a primeira infância. A partir de experiências já existentes, construímos nossa proposta de trabalho e a compartilhamos com a rede paulistana, que na época desconfiava e pouco conhecia o acolhimento familiar.
As primeiras reuniões foram com a Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social e com a Juíza da Vara da Infância e Juventude do Fórum Central. Depois, foram realizadas reuniões com o CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) da Sé e outras organizações do terceiro setor para o alinhamento da proposta e o estabelecimento de parcerias. A estruturação do serviço aconteceu com a elaboração de protocolos de comunicação internos e externos, a construção da metodologia de mobilização, avaliação, qualificação e acompanhamento das famílias acolhedoras, bem como do trabalho psicossocial a ser realizado com a criança e sua família, cuja sistematização encontra-se disponível no site do Instituto Fazendo História.
Em 2019, o município de São Paulo instituiu o serviço de família acolhedora como política pública, tendo priorizado a primeira infância. Desde então, foram firmados convênios com três entidades da sociedade civil, incluindo o Instituto Fazendo História, em 2020. Até o momento, já acolhemos 62 crianças de até 6 anos de idade, 44 já voltaram para suas casas ou foram adotadas com a certeza de que tiveram seus direitos respeitados.
Hoje, compreendemos cada vez mais que é possível fazer uma grande diferença na vida de crianças acolhidas na primeira infância, partindo do pressuposto de que é urgente priorizar esse momento da vida, que precisa de cuidados individualizados em famílias acolhedoras.
Camila Werneck de Souza Dias (presidente do IFH) e Heloisa de Souza Dantas (gerente técnica do IFH)
Texto publicado originalmente no site da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal