O texto a seguir é um trecho da tese de mestrado de Elânia Francisco que, gentilmente, autorizou a reprodução aqui neste blog. Quem quiser ter acesso ao conteúdo da tese na íntegra, clique AQUI
A pergunta contida no título dessa seção foi uma das indagações mais ouvidas durante o processo de investigação que deu origem a esta dissertação. Durante dois anos, não foram raros os momentos em que, ao apresentar a pesquisa em eventos científicos ou fora deles, ouvíamos questões como: “Por que estudar vivências afetivo-sexuais somente de adolescentes negras?”; “Afeto não tem cor!”; “Adolescência é adolescência, independente da cor”.
Inicialmente pensamos não ser necessário abrir essa reflexão no texto da dissertação, pois acreditávamos que poderia haver um desvio do foco de nossa pesquisa. No entanto, ao iniciar as entrevistas e debruçarmo-nos na leitura das produções acadêmicas para construir a base de nosso referencial bibliográfico sobre o tema, constatamos dificuldade em encontrar produção específica relacionada à adolescência negra, sobretudo quando se trata de vivências afetivo-sexuais de pessoas negras nessa fase de desenvolvimento. Em contrapartida, a temática Adolescência, de forma ampla, sem recorte étnico-racial, surge em nossas buscas de forma significativa.
Por meio de busca no Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES (CAPES, 2016), utilizando inicialmente a palavra “adolescentes”, encontramos 16.086 produções realizadas entre os anos de 2011 e 2016 em que esse termo aparece. Ao utilizar o termo “adolescentes negros” esse número cai para 29 produções no mesmo período. Modificando o gênero do termo e buscando produções com as palavras “adolescentes negras” esse número diminui para 10 nos últimos cinco anos. Por fim, ao realizar busca com os termos “adolescência negra afetividade”, nenhum registro foi encontrado.
Também realizamos busca no banco de teses e dissertações dos Programas de Pós Graduação da UNESP Araraquara em Educação Escolar (existente desde 1997) e em Educação Sexual (existente desde 2013), ambos com linhas de pesquisas dedicadas à produção de conhecimento na área de Gênero, Sexualidade e Cultura. Pudemos constatar a existência de duas teses de doutorado e cinco dissertações de mestrado que se dedicaram à reflexão e pesquisa sobre sexualidade na adolescência, no entanto nenhum desses trabalhos considerou o recorte étnico-racial em suas análises.
Sobre adolescência negra, cabe mencionar as pesquisadoras Maria Aparecida Silva (2005) e Maria Nazaré Salvador (2006), ambas, mestres em Sociologia pela UNESP Araraquara, que embora tenham dedicado suas dissertações de mestrado aos estudos sobre adolescência negra, buscaram compreender temas relacionados à construção de projeto de vida e percepção da discriminação racial, respectivamente.
Sobre a temática da afetividade, salientamos que pesquisadoras como Ana Cláudia Lemos Pacheco (2013) e Renata Jesus da Costa (2007) realizaram pesquisas sobre sexualidade, afetividade e identidade da mulher negra, contudo com recorte específico sobre a mulher negra adulta.
Com essas buscas, pudemos observar a existência de poucos estudos que propõem reflexões em que raça, gênero e afetividade estão em intersecção, sobretudo quando se trata de meninas adolescentes.
Quando obtemos resultado de 16.086 produções acadêmicas em que o termo “adolescentes” aparece nos últimos cinco anos, de que adolescentes estamos falando? É possível afirmar que a adolescência é uma construção linear? Podemos dizer que todas as adolescências são vividas de forma linear? Quais resultados obtivemos quando analisamos as adolescências considerando o quesito cor?
Ao levantarmos essas questões, sabemos que não conseguiremos respondê-las neste trabalho, mas desejamos instigar a reflexão sobre a importância de considerar que raça é um marcador social que impacta na construção das relações e no desenvolvimento humano.
Nesta seção apresentaremos, de forma breve, o percurso histórico do corpo negro feminino púbere em busca de seu reconhecimento enquanto um corpo de menina adolescente.
A negação da subjetividade: o corpo feminino negro e o início da puberdade no contexto escravista brasileiro
É impossível falar sobre qualquer aspecto da construção da identidade e subjetividade negra, seja ela na infância, vida adulta ou adolescência, sem abordar o período escravista no Brasil. Esse período foi de quase 400 anos de práticas racistas contra africanas e africanos que impactaram e ainda impactam no contemporâneo a vida de homens e mulheres negras no Brasil.
Não é a intenção, nessa subseção, abordar com profundidade aspectos do sistema escravista no Brasil que contribuíram fortemente para a criação de mitos em torno da sexualidade da mulher negra, pois sabemos que esse recorte, ainda que específico, gera ampla discussão e reflexão que esta dissertação não dará conta de sanar.
Faremos um recorte do recorte, visto que buscamos aqui refletir sobre a construção da adolescência negra feminina. Sendo adolescência um termo que não era atribuído às meninas negras no período escravista, falaremos então sobre a menina negra púbere, pois conforme nos diz Contardo Calligaris (2009) é a puberdade que serve de marcador para o início do que se concebe culturalmente como adolescência.
A puberdade é uma questão biológica, característica do desenvolvimento de todo ser humano. Desse modo, podemos afirmar que todos os corpos, independentemente de brancos ou negros, passarão por esse período de intensas mudanças biológicas.
Contudo, ainda que seja uma fase do desenvolvimento humano, o modo como a puberdade é vivenciada variará de acordo com seu contexto, sofrendo influências sociais e culturais. Assim, o período histórico e o contexto social também interferem na forma como a puberdade será vivenciada e compreendida. Conforme Nilma Lino Gomes (2002) nos informa, “um corpo é construído biologicamente e simbolicamente na cultura e na história” (p.41).
Maria Vittoria Pardal Civiletti (1991), em seu estudo sobre cuidados dados às crianças no Brasil escravista, mostra-nos o modo como o desenvolvimento da criança negra na casagrande se dava.
Na primeira infância, até os 6 anos, a criança branca era geralmente entregue à ama-de-leite. O pequeno escravo sobrevivia com grande dificuldade, precisando para isso adaptar-se ao ritmo de trabalho materno. Após esse período, brancos e negros começavam a participar das atividades de seus respectivos grupos. (Civiletti, 1991, p.33).
Assim, podemos constatar que já na infância não havia tratamento linear às crianças negras e brancas. Uma vez que as necessidades básicas de meninas e meninos negros se tornariam secundárias diante dos cuidados obrigatoriamente dados à criança branca. Durante o século XIX no Brasil o termo adolescência não era uma nomenclatura utilizada para designar uma fase de desenvolvimento de meninos e meninas negras.
Ainda de acordo com Civiletti (1991), “dos 12 (anos) em diante as meninas e meninos escravos eram vistos como adultos, no que se refere ao trabalho e à sexualidade” (p.33).
Já Sônia Maria Giacomini (1988) mostra que, ainda no século XIX, as senhoras brasileiras, donas de escravas (os), tratavam as crianças negras, geralmente filhas de amas-deleite, de forma semelhante ao tratamento dado a um animal de estimação. No entanto, se essa criança era do gênero feminino, ao iniciar a fase da puberdade passava a ser vista pela mesma senhora como um perigo sedutor para seu senhor, deixando a condição de “animal de estimação” para ocupar o lugar de “objeto sexual”, tornando-se, assim, alvo de ciúmes e ira de sua senhora.
Giacomini (1988) nos diz que, O desenvolvimento físico da escrava adolescente marca a passagem da escrava “animal de estimação” para escrava “objeto sexual”, com suas inevitáveis consequências na relação senhora-escrava. A ideologia corrente que associa a negra ao prazer sexual do branco, identificando em seu corpo o agente do estupro institucionalizado, fez recair também sobre a escrava, como se não bastasse a objetificação sexual, inconfessáveis sentimentos de inveja das senhoras. As mutilações, extirpações, deformações e outras atrocidades praticadas por senhoras no corpo das negras, das quais abundam exemplos na literatura da época, privilegiaram, não por acaso, as regiões corporais comumente identificadas a seu poder de sedução: nádegas, dentes, orelhas, faces, etc. [itálicos nossos] (Giacomini, 1988, p.79).
Desse modo, podemos deduzir que os registros sobre a sexualidade de mulheres negras do século XIX no Brasil referem-se não somente às mulheres negras adultas, mas também às adolescentes negras com idade de 12 anos ou mais.
A puberdade, mostrando seus primeiros sinais nos corpos negros, era o período que marcava a forma como mulheres brancas e homens brancos passariam a perceber a presença da sexualidade da menina negra. Assim, o corpo negro feminino seria visto pelas senhoras como um corpo rival e perigoso e pelos senhores como um corpo objeto de cobiça, mas em ambos os casos a culpa voltava-se para a própria mulher negra, já que era ela a portadora de atributos físicos que provocavam o desejo do homem branco e o ciúme de sua senhora (Giacomini, 1988, p.66).
Cabe ressaltar que o termo “rivalidade de mulher com mulher”, utilizado por Gilberto Freyre (1980) citado por Giacomini (1988) para referir-se aos maus-tratos e atos extremamente violentos promovidos pelas senhoras contra as mulheres escravizadas, trata-se na verdade de uma rivalidade entre senhora e escrava e não simplesmente entre mulheres, uma vez que “uma (a senhora) pode deixar correrem soltos seus sentimentos em relação à outra (a escrava), com a total impunidade garantida por sua situação de classe e no pleno exercício de sua função de escravaria da casa.” (Giacomini, 1988, p.80).
Um fragmento do relato de um ex-oficial do Exército Imperial chamado Schlichthorst, datado de 1825, traduzido por Emmy Dodt e Gustavo Barroso em 2000 descreve sua sensação ao aproximar-se de uma “mulher” negra:
Doze anos é a idade em flor das africanas. Nelas há, de quando em quando, um encanto tão grande que a gente esquece a cor. As negrinhas são geralmente fornidas e sólidas, com feições denotando agradável amabilidade, e todos os movimentos cheios de graça natural, pés e mãos, plasticamente belos. Lábios vermelhos-escuros e dentes alvos e brilhantes convidam ao beijo. Dos olhos se irradia um fogo tão peculiar e o seio arfa em tão ansioso desejo que é difícil resistir a tais seduções.” [itálicos nossos] (Schlichthorst, [1825] 2000, p.218).
Giacomini (1988) aponta para a informação de que era função da mulher negra iniciar sexualmente os filhos do senhor de engenho, sendo que esta era uma prática ensinada de pai para filho enquanto, aparentemente, eram consentidas pelas senhoras (Giacomini, 1988, pp.69-70).
Nesse contexto de exploração da sexualidade da mulher negra, “as relações 'familiares' e sexuais entre escravos, quando possíveis, necessariamente levariam as marcas e deveriam se adaptar à inevitável sujeição sexual da escrava ao senhor.” (Giacomini, 1988, p.70).
Embora houvesse uma hipererotização do corpo púbere de meninas negras, Angela Davis (2016) nos alerta para uma questão importante com relação aos estupros ocorridos contra mulheres negras.
Seria um erro interpretar o padrão de estupros instituídos durante a escravidão como uma expressão dos impulsos sexuais dos homens brancos, reprimidos pelo espectro da feminilidade casta das mulheres brancas. Essa explicação seria muito simplista. O estupro era uma arma de dominação, uma arma de repressão, cujo objetivo oculto era aniquilar o desejo das escravas de resistir, nesse processo, desmoralizar seus companheiros. (Davis, 2016, p.36).
Cabe também informar à leitora e leitor que dentre as notícias dos jornais brasileiros do século XIX, anúncios de fugas de meninas negras púberes eram constantes, e, conforme destaca Giacomini (1988), isso pode nos indicar um movimento de resistência diante das atrocidades vivenciadas em seus corpos.
A seguir, destacamos duas notícias do Diário do Rio de Janeiro publicadas no ano de 1850.
Fugio, haverá um mez, uma rapariga, de nome Albina, idade de 16 a 17 annos, estatura mediana, corpo cheio e bem feito (Diário do Rio de Janeiro, 13/07/1850 (citado por Giacomini, 1988, p.84).
Fugio da rua da Pedreira da Glória n.31, uma negrinha de nome Carolina, com 12 anos de idade, bonita, dentes grandes (Jornal do Commercio, 05/07/1850 (citado por Giacomini, 1988, p.84).
Diante de violências constantes praticadas em sua sexualidade ainda púbere, supomos que pouco havia de espaço para vivências afetivo-sexuais autônomas e bem-sucedidas de nossas ancestrais.
Com relação aos afetos, bell hooks (2010) aponta o escravismo como um período em que negros e negras, ao presenciarem e vivenciarem punições cruéis e abusos contra si e outras pessoas negras, eram obrigadas a conter e reprimir muitos de seus sentimentos e emoções como forma de sobrevivência.
Num contexto onde os negros nunca podiam prever quanto tempo estariam juntos, que forma o amor tomaria? Praticar o amor naquele contexto poderia tornar uma pessoa vulnerável a um sofrimento insuportável. De forma geral, era mais fácil para os escravos se envolverem emocionalmente, sabendo que essas relações seriam transitórias. A escravidão criou no povo negro uma noção de intimidade ligada ao sentido prático de sua realidade. Um escravo que não fosse capaz de reprimir ou conter suas emoções, talvez não conseguisse sobreviver. (hooks, 2010).
Essa prática da repressão dos sentimentos como forma de sobrevivência, segundo Hooks (2010), não cessou com a abolição do regime escravista, uma vez que ao abolir o regime escravocrata não se aboliu o racismo e a supremacia dos brancos sobre os negros.
Recordar o modo como o corpo da menina negra púbere era tratado no período escravista nos proporciona uma reflexão sobre o percurso histórico da construção de vivências afetivo-sexuais de adolescentes negras da atualidade, uma vez que muitas crenças desse período ainda estão no imaginário de boa parte da população brasileira.