No dia 18 de janeiro de 2018 foi realizada a oficina "Trabalho com Famílias: um Desafio para toda Equipe" que contou com as participações da psicóloga Maria Angela Maricondi do NECA e da assistente social Sandra dos Santos Gama do SAICA Raio de Luz na cidade de São Paulo.

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Após um momento de integração inicial do grupo, Maria Ângela falou sobre o conceito de família que a Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social (NOB/SUAS) define como “um grupo de pessoas, vinculadas por laços consanguíneos, de aliança ou de afinidade, onde os vínculos circunscrevem obrigações recíprocas e mútuas, organizadas em torno de relações de geração e de gênero”. Ao longo da História, as estruturas familiares sofreram alterações diretamente relacionadas às mudanças ocorridas na sociedade (ex. tecnologia, divisão social do trabalho, reordenamento dos papéis sociais, etc.). Nas definições clássicas de família, a consanguinidade era um elemento fundamental, porém na modernidade, os critérios de afetividade e solidariedade passaram a se sobressair. Para a psicóloga, o conceito mais adequado é aquele que contempla toda a diversidade de relações presentes na sociedade, ou seja, coabitação, consanguinidade, afinidade afetiva e/ou solidariedade.

Ainda que tenha havido avanços em relação ao conceito de família a partir da desconstrução de um modelo ideal de sua organização, até hoje há um conservadorismo nas expectativas e nas práticas dos profissionais que atuam com as famílias, sendo importante acabar com a culpabilização das famílias pelas dificuldades que enfrentam para se organizarem. Segundo a psicóloga, tais dificuldades estão diretamente relacionadas à situação de vulnerabilidade social dessas famílias, diretamente relacionada à desigualdade social do país. A especialista ainda apontou que os profissionais devem evitar idealizar e romantizar a família – ela é lócus de proteção, mas também de desigualdade e violência. Supervalorizar a família pode oprimir e invisibilizar seus membros.

Quanto à caracterização da família contemporânea, Angela apontou os seguintes aspectos: 1) crescimento do número de pessoas idosas nas famílias; 2) diminuição de famílias constituídas pela tríade pai, mãe e filhos (família nuclear conjugal); 3) aumento do número de famílias compostas por mães morando sozinhas com seus filhos e em alguns casos, por pais morando sozinhos com seus filhos (famílias monoparentais); 4) ampliação do número de pessoas morando sozinhas e de famílias reconstituídas (filhos de casamentos anteriores morando juntos); 5) aumento da preferência por uniões consensuais em detrimento dos matrimônios legais; 6) persistência de famílias extensas ou ampliadas, 7) surgimento de famílias de casais sem filhos por opção; 8) surgimento de famílias compostas de amigos, cujas relações de parentesco são baseadas na afinidade (família por associação) e 9) aumento do número de famílias de casais homossexuais (a união homoafetiva foi reconhecida pelo STF em maio 2011; a obrigatoriedade de realização dos casamentos pelos cartórios consta da Resolução nº 175/2013 do CNJ).

 A especialista ainda chamou a atenção para a constante intervenção do Estado nas famílias. Tais intervenções ocorrem por meio de medidas jurídicas (legislações relativas ao casamento e à sua dissolução, à proteção da criança, do adolescente e do idoso, entre outras), econômicas (normatizações relativas ao trabalho e à previdência social, por exemplo) e institucionais (referentes à saúde e à escolarização etc.). Para a psicóloga, ainda que tenha havido avanços históricos no Brasil em relação aos direitos de cidadania da população em geral (ex. direitos dos idosos, direitos das crianças e adolescentes, etc.), o Estado (agentes e equipamentos) passou a interferir cada vez mais no cotidiano das famílias das camadas populares. Neste sentido, é importante que os profissionais que atuam nos serviços de acolhimento possam refletir sobre o próprio papel, já que representam o Estado na relação com as famílias.

Atualmente muitas famílias demostram ter medo do Conselho Tutelar, do assistente social, entre outros profissionais, já que muitas vezes têm medo de perder o filho/filha. Angela então elencou algumas recomendações práticas para o trabalho social com as famílias. São elas:

  1. Refletir sobre os próprios valores, crenças e mitos em relação à família. Tal fato é importante para não julgarmos a partir das nossas próprias referências que podem ser diferentes das famílias que atuamos;
  2. Evitar julgamentos baseados em preconceitos; 
  3. Observar como as famílias se comunicam e auxiliar na tradução dos conteúdos verbais e não verbais;
  4. Ser capaz de acolher a raiva, culpa, tristeza, desamparo e outros sentimentos expressos pela família;
  5. Observar as emoções fortes que a família suscita no profissional e não responder/reagir a partir dessas emoções (sejam positivas ou negativas) – se for preciso, adiar uma decisão e discutir o caso com a equipe ou supervisão especializada;
  6. É preciso reconhecer e valorizar os saberes e recursos da família – muitas vezes o profissional acha que sabe e a família não sabe nada;
  7. Ser capaz de olhar a família a partir de uma perspectiva multidimensional, a partir de três diferentes perspectivas:  estrutural (questões de classe social, gênero, geração e outras), funcional (divisão de funções e papéis na família) e relacional (como os membros se vinculam, sentimentos predominantes, principais expectativas e temores, etc.). É preciso entender que essas dimensões não são estanques e estão interligadas. 
  8. Identificar e buscar ampliar a rede social da família;
  9. Promover sempre o diálogo, a troca de informações e a reflexão crítica;
  10. Construir junto com as famílias (alternativas de mudança) e não por/pela família. É importante que os profissionais tomem cuidado para não serem intervencionistas e não assumam para si e a partir das próprias referências o que compete à família.

Ao final de sua apresentação, a especialista falou sobre a metodologia do trabalho em rede com as famílias baseado na autora italiana Lia Sanicola, que iniciou sua vida profissional nos serviços de acolhimento. Para tanto, a psicóloga explicitou que a rede é um conjunto de relações interpessoais a partir das quais uma pessoa mantém sua identidade social, recebe sustento emocional, ajuda material, serviços, informações, etc. Ela é caracterizada pelo número de pessoas envolvidas e suas inter-relações, os tipos de laços que estabelecem e as trocas que circulam entre as pessoas. Em relação ao tipo de trocas, Angela citou a reciprocidade, a solidariedade, os direitos, dinheiro, entre outros. Há ainda dois tipos de redes mencionadas pela Lia Sanicola: as redes primárias e secundárias. No primeiro caso, a rede é construída a partir de vínculos que são estabelecidos na história da pessoa, não são criadas ou produzidas, apenas geradas no tempo, reconhecidas, promovidas e orientadas.

As redes primárias dizem respeito às relações diretas com as pessoas (ex. parentes, amigos e vizinhos) e são baseadas principalmente na reciprocidade e solidariedade. As redes secundárias por sua vez são produtos de uma verdadeira engenharia social e estão basicamente relacionadas às instituições. Quando muitas vezes falamos do trabalho em rede, estamos nos referindo às redes secundárias, tais como as reuniões que participam a Vara da Infância, CREAS, CRAS, abrigos, etc. 

Na metodologia proposta pela autora italiana, o operador social monta com a família uma reunião/encontro com a pessoas de sua rede primária. A família é que vai definir com o operador social quem ela entende que é importante para ajudar na resolução do problema que está vivendo. O foco acaba estando na rede primária, mas pode haver a participação de pessoas da rede secundária (ex. assistente social da CREAS). A intervenção em rede nesta abordagem parte de duas premissas: 1) a pessoa é responsável por sua própria vida e 2) a pessoa concebe sua vida na relação com outras pessoas. Para que a metodologia possa ser operacionalizada, é necessário ter uma questão precisa e muito bem delimitada. Inicialmente é feita uma lista de indivíduos significativos ou uma boa descrição do cotidiano da pessoa. O ponto de partida é a existência de uma demanda individual/coletiva ou o surgimento de um problema, sendo que a ação se desenvolve por meio de reuniões ou encontros. As condições para o trabalho acontecer são o consenso e a disponibilidade das pessoas, sendo que o trabalho vai se desenvolvendo no ambiente de vida da rede, sendo, portanto, fundamentais o lugar e o tempo. Os passos para intervenção em rede são os seguintes: 

  1. Obter uma boa descrição do cotidiano da pessoa e ou uma lista;
  2. Fazer o mapa de rede social da pessoa junto com ela;
  3. Levantar uma boa hipótese de trabalho;
  4. Coordenar encontros de pessoas e instituições. 

Após a apresentação da psicóloga Angela Maricondi, a assistente social Sandra Gama falou sobre o trabalho que desenvolve há mais de 13 anos em serviços de acolhimento. Logo no início de sua fala, Sandra pontuou que um serviço de acolhimento visa acima de tudo o desacolhimento, seja pelo retorno da criança à família biológica, porque a criança/adolescente vai para uma família substituta ou porque o acolhido chega à maioridade. Assim que a criança/adolescente chegam ao serviço, é necessário que a família seja ouvida. Sandra destacou neste momento de sua fala que se não houver proibição expressa do judiciário em relação às visitas, a família tem autorização para fazer visitas e estar no serviço de acolhimento. Caso a família não vá ao abrigo institucional, a equipe deve ir atrás dela para escutá-la. 

Para Sandra, é fundamental que todos os educadores e equipe operacional sejam preparados para receber a família, o que inclui fazer com que todos possam conhecer desde o primeiro momento o motivo do acolhimento, sendo necessário confiar no educador como parte da equipe. Segundo a assistente social, na preparação para o trabalho direto com as famílias e com as crianças/adolescentes, o educador deve ser incluído nas visitas domiciliares e compreender o seu próprio papel, já que muitas vezes o profissional que atua no cotidiano do abrigo é vizinho da família de um acolhido.

A relação de ética é construída no dia a dia e nas supervisões e reuniões entre todos os funcionários do abrigo (horas técnicas). As visitas domiciliares podem ajudar o educador a compreender o que a criança diz quando se refere ao local e as relações que eram vivenciadas antes do acolhimento. Para ela, “se você traz para dentro da realidade do educador a realidade da criança, ele terá mais propriedade para lidar as 12 horas de trabalho com o acolhido”. Neste trabalho de incluir os educadores no trabalho técnico, é também importante que ele/ela possa participar de uma reunião de rede com o judiciário para compreender o trabalho que está sendo construído com a criança/adolescente. No geral, a assistente social acredita que a coordenação e equipe técnica devem deixar de ser centralizadores e envolver cada vez mais a equipe como um todo na compreensão do trabalho técnico que é realizado. 

No serviço de acolhimento que Sandra coordena, o processo de integração de um novo profissional acontece da seguinte forma: no primeiro dia ela pede para o educador ficar no plantão para sentir o funcionamento geral do trabalho com as crianças e adolescente. No segundo dia ela chama o educador com um caderno e relata todos os casos e objetivo do trabalho com cada criança/adolescente para que o profissional tenha ferramentas para compreender e lidar melhor com os acolhidos, de maneira alinhada com o trabalho técnico que está sendo desenvolvido. Sandra citou o exemplo de um menino de 11 anos que estava no abrigo e que tinha problemas psiquiátricos, sendo que toda equipe na época apanhou do acolhido. Segundo a assistente social, a vida inteira o menino só tinha sido agredido e não sabia se relacionar de outra forma – não tinha ideia do que era carinho, colo, etc. A mãe tinha o mesmo CID que a criança e não sabia lidar com o filho quando ele morava com ela. Quando o filho tinha alguma crise, ela dava muitos comprimidos até que ele ficasse desacordado, sendo que algumas vezes ela chamava o SAMU porque o menino não acordava pelo excesso de medicação. Sandra pontuou que a vida toda as pessoas só relatavam que a mãe era agressiva e violenta, mas que ninguém tinha se aproximado e feito um trabalho de escuta com ela para saber o que qual era a visão da mãe sobre violência, educação e cuidado. Na relação com a mãe foi necessário apresentar outros caminhos/maneiras da mãe se relacionar com o filho que não por meio da violência. Este trabalho tem que ser feito por toda equipe, incluindo os educadores. 

Em relação às visitas, Sandra disse que no abrigo que coordena não há dia certo para as visitas da família, sendo que todos os dias o pai/mãe/outros membros podem visitar o acolhido. Para ela é fundamental o fortalecimento de vínculos com a família, sendo que a participação dos familiares acontece em diferentes momentos: reunião da escola, visitas médicas, etc. Para ela, o apoio da rede no trabalho de fortalecimento de vínculos da criança com a família é fundamental para o desacolhimento. A assistente social trouxe exemplos durante a sua fala para ilustrar a importância do trabalho em rede para não culpabilizar a família e caracterizá-la como incompetente. Para a coordenadora, muitas vezes a família não é ouvida (compreendida em todas as suas dificuldades) pelo judiciário, CT e outros órgãos. Os profissionais da rede também buscam impor uma realidade que muitas vezes não é a da família e é fundamental que a escuta da família não seja carregada de julgamentos prévios, sendo que os profissionais devem  compreender que a maioria das famílias que trabalhamos fazem parte de gerações de famílias que passaram por violência. 
    
No segundo momento da oficina foram realizados debates em subgrupos tendo as seguintes perguntas que auxiliariam a disparar a discussão:

  1. Quais são os principais desafios que você enfrenta no trabalho com as famílias das crianças e adolescentes acolhidos? 
  2. Quais são as atividades desenvolvidas no seu serviço de acolhimento que visam o fortalecimento dos vínculos familiares? 
  3. A partir da fala do especialistas e discussão no grupo, algo mudou na sua maneira de pensar e olhar o tema? Que novas estratégias podem ser pensadas no trabalho com as famílias dos acolhidos?

    Ao final os grupos apresentaram os principais pontos debatidos e os especialistas voltaram a esclarecer dúvidas do público presente.

Assista à oficina na íntegra aqui: