No dia 29 de julho de 2017 foi realizada a oficina “Uso de Drogas: Caminhos no Cotidiano”. O encontro contou com as participações do psiquiatra Luis Fernando Tófoli, professor-doutor do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e co-fundador do Laboratório de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (LEIPSI), e da psicóloga Heloisa de Souza Dantas, que atua no Programa de Formação do Instituto Fazendo História e é professora do curso de Pós-Graduação em Psicossociologia da Juventude e Políticas Públicas da FESP e coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos e Política de Drogas do GREA-IPq-HC- FMUSP.  

Inicialmente os especialistas realizaram uma atividade com os participantes da oficina com o objetivo de debater conhecimentos prévios, preconceitos e mitos associados à questão das drogas de modo a problematizá-los e discuti-los com o grupo. 

Após este primeiro momento, Heloisa iniciou a apresentação com o seguinte questionamento: “por que, apesar de estarmos em 2017, o assunto drogas continua sendo um tabu em nossa sociedade? ”. Segundo Heloisa, ainda que as drogas sempre tenham sido utilizadas ao longo da História, qualquer discussão sobre o tema ainda está vinculada ao viés proibicionista que acabou imperando a partir do século XX e com mais força nas décadas de 1970 e 1980 com a chamada “guerra às drogas”.

O proibicionismo pode ser compreendido como um conjunto de forças sociais que buscou abolir a produção, comércio e consumo de determinadas substâncias do mundo (com foco na maconha, cocaína e heroína). A proibição acabou criminalizando tanto o tráfico quanto o consumo de determinadas drogas que entraram para o campo da ilegalidade, sendo que uma das consequências foi o estabelecimento de uma visão estigmatizante do sujeito que faz uso de drogas, bem como do chamado traficante. 

Em sua fala, a psicóloga ainda apontou as principais consequências de uma ideologia de “guerra às drogas”, que são: 1) crença em um mundo livre de drogas, que não se concretizou já que as pessoas continuam a consumir as chamadas drogas ilícitas; 2) a única forma de tratamento possível seria a abstinência, porém sabe-se que a redução de danos é uma outra forma de lidar com o uso problemático e com a dependência de substâncias, ou seja, para a psicóloga não seria possível a preconização de um único modelo de tratamento. Neste aspecto, Heloisa salientou que o “De Braços Abertos”, programa desenvolvido na região da Cracolândia na gestão passada da prefeitura de SP, estava baseado em uma proposta de redução de danos e partia de um modelo “housing first”, que buscava oferecer moradia e condições mínimas de trabalho e de outras políticas sociais para os que fazem uso problemático da droga.

O programa não tinha como meta a abstinência do usuário, mas apostava em políticas sociais e na redução do consumo; 3) desqualificação e demonização do usuário e do "traficante” – a psicóloga enfatizou que muitas vezes os próprios profissionais dos serviços de acolhimento acabam partindo de uma visão reducionista e preconceituosa em relação a adolescentes que chegam nos abrigos e que fazem uso de drogas, focando unicamente neste uso e esquecendo de olhar outros aspectos da vida desses sujeitos; 4) demonização da substância – nenhum uso seria possível, pois sempre seria nocivo; 5) centralização exclusiva na ação biológica das drogas sobre o cérebro que  explicaria por si só todas as alterações do comportamento e 6)  associação dramática frequente entre droga e sexo, droga e crime, droga e loucura, droga e morte.  

Segundo Heloisa, ao proibir a produção, o comércio e o consumo de drogas, o Estado potencializou um mercado clandestino e criou novos problemas, tais como a violência advinda do tráfico; a perda do controle sobre as drogas produzidas (quando a pessoa compra uma substância na ilegalidade, não sabe o que há na composição da droga); tratamento de substâncias e padrões de consumo diferentes como se fossem uma coisa só (tudo se transforma em “droga” e qualquer uso é considerado prejudicial), e aumentou o encarceramento em massa. 

Em relação à sua indagação inicial sobre o predomínio de um tabu relacionado ao tema das drogas, a psicóloga trouxe as seguintes reflexões: ainda hoje há um predomínio de que a substância é a grande causadora dos males sociais (ex. destrói famílias, leva o usuário a cometer crimes, gera violência, entre outros), mas a grande questão é que na prática as drogas acabam assumindo o lugar de bode expiratório – “se eu foco na droga, eu não olho para outras questões sociais graves, como a desigualdade e o racismo”. Para Heloisa, falar sobre as drogas ou sobre formas diferentes do Estado se relacionar com a produção, comércio e uso é ser “a favor das drogas”, é fazer uma apologia e não se preocupar com os riscos associados ao uso. A psicóloga enfatiza o quanto a polarização sobre a compreensão do tema acaba sendo nociva para o debate. 

Na sequência, a especialista explicitou que segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), droga é qualquer substância não produzida pelo organismo que tem a propriedade de atuar sobre um ou mais de seus sistemas, produzindo alterações em seu funcionamento. De acordo com esta definição, aspirina poderia ser considerada uma droga. No entanto, Heloisa diferenciou a categoria das drogas/substâncias psicoativas que seriam aquelas que atuam sobre o cérebro (SNC), alterando de alguma maneira o psiquismo (altera o estado normal de vigília e sensopercepção). Dentre essas, há drogas lícitas (ex. cigarro e bebidas alcoólicas) e ilícitas (ex. maconha, cocaína, etc.). Outra classificação de caráter didático está relacionada aos efeitos das substâncias no sistema nervoso central (SNC), sendo as seguintes:

•    Estimulantes da atividade do SNC: aquelas que de maneira geral estimulam o funcionamento do nosso SNC fazendo com que a pessoa que a utilizou fique mais “ligada”, agitada, “elétrica”, sem sono e sem apetite. 

•    Depressores da atividade do SNC: aquelas que de maneira geral diminuem o ritmo de funcionamento do SNC, fazendo com que seus consumidores fiquem mais “devagar”, ou seja, “lentificados” e sonolentos.

•    Perturbadores da atividade do SNC: aquelas que causam alterações no funcionamento cerebral quando consumidas, modificando a percepção da realidade e fazendo com que os consumidores tenham uma percepção “perturbada” de si e do meio.

A tabela abaixo apresentada por Heloisa indica algumas drogas de acordo com as classificações apresentadas acima: 

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A ação de cada droga depende dos seguintes fatores: tipo da droga, via de administração, quantidade da droga, tempo, frequência de uso, qualidade da droga, absorção e da eliminação da droga pelo organismo, associação com outras drogas, contexto social, bem como das condições psicológicas e físicas do indivíduo. Heloisa, no entanto, destacou que qualquer entendimento sobre o tema vai depender da relação estabelecida entre o sujeito e a droga, ou seja, não é possível falar em droga sem sujeito. Além desse ponto, a psicóloga enfatizou que a minoria dos usuários se torna dependente, sendo que a dependência não configura um tipo clínico, já que cada dependente é um e cada um se vincula às drogas por caminhos e razões particulares. Segundo a especialista, há diferentes maneiras de usar drogas, tais como o uso social e esporádico, o uso acentuado, o uso regular sem consequências aparentes no cotidiano, o uso frequente que traz problemas e o uso que traz total desorganização da vida.  A droga acaba tendo uma função diferente e específica de acordo com o tipo de organização psíquica na qual ela incide. 

Para finalizar, Heloisa abordou brevemente a Lei 11.343/2006 que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas com diretrizes para prevenção, tratamento e reinserção social de dependentes e o reconhecimento da importância da redução de danos. Em 2006 houve o fim da pena de prisão (não houve descriminalização) da posse para o consumo de drogas. O artigo 28 estabeleceu medidas alternativas à prisão, que são: advertência sobre os efeitos das drogas; prestação de serviços à comunidade; e medida educativa de comparecimento à programa ou curso educativo. O artigo 33 por sua vez previu sanções consideravelmente mais altas para os crimes de produção e tráfico, impedindo a substituição da privação de liberdade por penas restritivas de direitos e aumento de tempo mínimo de 3 anos para 5 anos de reclusão.

No segundo momento das apresentações, Luis Fernando Tófoli exibiu duas entrevistas: a primeira com o músico Tony Bellotto disponível no link ao lado a partir dos 2:45 (https://www.youtube.com/watch?v=2vRedtaV_PQ) e a segunda com Nando Reis (https://www.youtube.com/watch?v=spV9CpqXPZM). O psiquiatra enfatizou que há várias camadas de análises possíveis sobre as experiências dos dois músicos em relação ao uso de drogas, mas que é importante compreender que são duas pessoas brancas, de classe média e que fazem sucesso. Se o tema já é bastante complexo para este segmento de pessoas, torna-se ainda mais complicado quando são levadas em conta a privação social e econômica dos usuários.

Para o especialista, um dos grandes problemas da ciência da dependência é que até recentemente, não havia o foco para a questão social, ou se olhava unicamente a questão social como consequência do uso problemático de drogas (e não como possível causa). O psiquiatra pontuou ainda que as drogas também podem ser consideradas enquanto fator de risco para o uso problemático, ainda mais quando são levadas em conta tais questões sociais.  
Tófoli deu sequência à sua apresentação sobre o tema utilizando a metáfora indiana do elefante e dos monges cegos. A história original trata dos monges que encontraram um elefante e deveriam definir o animal sem conseguir enxergá-lo por inteiro. Cada um deles, ao tocar o elefante, deveria descrevê-lo. O especialista seguiu a apresentação comparando o objeto “droga” ao “elefante”. O primeiro cego apalpou a orelha do elefante e afirmou que o animal era um leque. Para o especialista, quando o tema é drogas, ouvem-se muitas coisas (drogas lícitas x ilícitas; malefícios x benefícios; diversos perfis de drogas, etc.). Muitas vezes a compreensão do consumo acontece de forma cristalizada, havendo múltiplos estereótipos, como o do “drogado” e o do “filhinho de papai que usa drogas”. O fato é que há ainda muita ignorância sobre o tema, sendo importante ventilar informações sobre o assunto.

Neste sentido, Tófoli apresentou o gráfico abaixo de uma pesquisa do psiquiatra britânico David Nutt que evidencia uma avaliação das diferentes substâncias psicoativas a partir da comparação entre os danos que elas oferecem para os usuários e os possíveis danos para as outras pessoas. De acordo com tal classificação, as bebidas alcoólicas assumiriam o primeiro lugar principalmente pelos possíveis danos que poderiam causar aos outros, como a violência. Em último lugar estão os psicodélicos, que ofereceriam principalmente riscos aos usuários e não às outras pessoas. O psiquiatra salientou que a interpretação dos dados não significa que o uso de psicodélicos não traga prejuízos, sendo extremamente delicado, por exemplo, quando há o consumo dessas substâncias por um psicótico ou por uma pessoa despreparada que pode se acidentar. O mais importante é considerar o contexto do uso e do usuário. 

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Quanto aos outros fatores que deveriam ser ventilados sobre o tema, Tófoli destacou os seguintes: 
1.    Crack não vicia no primeiro uso e existem usuários que não são dependentes;
2.    O termo epidemia não é adequado quando se fala sobre o uso de crack: ao mencionarmos o termo, estamos falando de doenças transmissíveis e não é assim que funciona a lógica da relação entre as drogas e os sujeitos;
3.    O uso problemático de drogas está associado mais frequentemente a problemas sociais (havendo exceções);
4.    Usuários de crack não são zumbis;
5.    Descriminalização das drogas não aumenta o consumo e facilita o acesso aos serviços de tratamento, sendo este dado muitas vezes negligenciado nas discussões.

Ainda em relação à metáfora do elefante, o psiquiatra mencionou que o outro monge cego subiu em cima do elefante e achou que ele fosse um trono ou parede. Traçando um paralelo com a questão das drogas, esta dimensão tem relação direta com o lugar e ocasiões em que as pessoas usam drogas (ex. bares, rua, baladas, rituais, etc.). Olhar esta dimensão é importante para pensar como as pessoas se controlam, “policiam” ou aprendem a usar drogas. 

Tófoli deu sequência à apresentação mostrando que outro cego acabou segurando no chifre do elefante, achando que o animal era uma lança. Para ele, a metáfora permite pensar na importância de se compreender que são as pessoas que se lançam ao uso de drogas, sendo que a cada momento a pessoa pode estar diferente. Ou seja, uma mesma pessoa pode fazer uso problemático de drogas em um determinado período da vida e não mais fazê-lo em outro momento, apesar de existir uma tendência daquele que já está dependente a se manter neste padrão de consumo, mas isto não é absoluto. Tal concepção questiona a ideia de que o dependente seguirá neste padrão a vida toda e a única forma de tratamento seria a abstinência. Para o psiquiatra a abstinência é importante e, para alguns, como no caso do Nando Reis, foi um caminho interessante. Porém, não é possível conceber a abstinência como a única forma de tratamento em todos os casos.

O especialista em sua fala esclareceu que o conceito de dependência é um conceito médico criado em meados do século XIX para o alcoolismo e depois foi se expandindo para outras drogas. Hoje não existe mais a diferença entre dependência química e psicológica. É importante também considerar que as pessoas podem fazer um uso problemático de drogas sem preencherem os critérios de dependência. Por exemplo, uma pessoa que bebe, dirige e bate o carro. O uso problemático é importante, pois permite identificar o uso nocivo ainda que tenha acontecido em uma única ocasião. O importante para o especialista não é a definição da dependência enquanto doença, mas a relação que a pessoa estabelece com a droga, sendo importante questionar a concepção meramente biológica do uso problemático de substâncias. Além disso, podem haver metas diferentes para o tratamento em momentos diferentes (ex. em algum momento a abstinência pode ser a meta, mas em outro pode ser que o mais importante seja manter a pessoa viva). 

Ainda em relação à metáfora do elefante, um dos monges definiu a partir do rabo do elefante que ele seria uma corda. Tal metáfora permite reconhecer a importância da interprofissionalidade, intersetorialidade, interdisciplinaridade e intersubjetividades dos profissionais que atuam neste campo, sem que haja o predomínio do conhecimento médico. Outro cego por sua vez pegou na tromba do elefante e achou que ela era uma serpente, o que permite relacionar com o fato da droga ser demonizada, havendo um pânico moral e uma tentativa de controle das pessoas que são consideradas indesejadas socialmente. 
Dando continuidade, Tófoli mencionou o fato do último cego ter compreendido que a pata do elefante era uma árvore, sendo fundamental a partir desta metáfora pensar no planejamento e no trabalho cotidiano. O que é possível “plantar” neste campo? O primeiro ponto é a inclusão de experiências de redução de danos (RD) enquanto ferramenta terapêutica. Para aAssociação Internacional de Redução de Danos, “redução de danos é um conjunto de políticas e práticas cujo objetivo é reduzir os danos associados ao uso de drogas psicoativas em pessoas que não podem ou não querem parar de usar drogas. Por definição, redução de danos foca na prevenção aos danos, ao invés da prevenção do uso de drogas”.

Para Tófoli, além da RD, também é importante debater seriamente a descriminalização do uso de drogas, a despenalização do pequeno tráfico, o uso terapêutico de drogas ilícitas, as possíveis regulamentações da maconha e a reforma da saúde mental. O psiquiatra ainda mencionou a importância de evitar a dicotomia na área, representada pelas diferentes posições da figura abaixo. Para ele, as duas posições são importantes e devem ser consideradas no debate , prevenção e tratamento da pessoa que faz uso problemático de drogas. 

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 O especialista ao final mencionou o fato de que há duas versões para o final da história dos cegos e o elefante. Na primeira os monges não conseguiram chegar a um acordo sobre o que era o elefante e brigaram, mas na segunda versão todos foram capazes de conversar e definir o elefante, sendo possível comparar com a importância do trabalho em rede para haver saídas virtuosas nesta área. 

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