No dia 30 de setembro de 2017 foi realizada a oficina "Racismo e suas Implicações no Acolhimento" que contou com as participações do psicólogo e professor do Departamento de Psicologia Social da USP, Alessandro Santos e do psicólogo Emiliano de Camargo David do Instituto AMMA Psique e Negritude.
Alessandro iniciou a apresentação elucidando que a Psicologia Social estuda a relação indivíduo, grupo e sociedade. O objeto de estudo é a interação entre esses três elementos que formam a dimensão psicossocial. O psicólogo então fez duas distinções em relação à dimensão psicossocial: os efeitos e os fenômenos psicossociais. O preconceito, para Alessandro, é um fenômeno psicossocial - um fenômeno que articula as dimensões social e psicológica. Para compreender melhor o tema, Alessandro debateu os seguintes conceitos: estigma, estereótipo, preconceito e discriminação. Para ele, tais temas apontam para a relação que a sociedade estabelece com “os outros”, aqueles que são diferentes de um padrão universal que em algum momento foi estabelecido enquanto ideal de verdade, beleza, justiça e etc. Para ele, há uma hegemonia de um determinado sistema de interpretação de mundo que pode ser entendido como sendo a própria cultura e também um sistema produtivo que acabam se impondo sobre outros sistemas, fazendo com que haja o predomínio de determinados juízos de valores do que é belo, verdadeiro e falso. O sistema que se impôs ao longo da História ocidental foi o eurocêntrico.
Tudo que era diferente do sistema europeu, era “etno”, ou seja, estrangeiro, que alterava o que era hegemônico. Para impor seu sistema de interpretação de mundo, foi necessário classificar, hierarquizar, localizar e subjetivar todos que não eram idênticos. Também foi necessário “matar” outros sistemas de interpretação de mundo, os chamados epistemicídios. Para o professor, a maior experiência das Américas que é um fenômeno transnacional é o colonialismo e o escravismo que tem efeitos até os dias atuais e é fruto da imposição de um sistema de interpretação de mundo sobre outros.
Alessandro destacou que o preconceito enquanto fenômeno psicossocial carrega, de um lado, uma dimensão ético-política relacionada a ausência de respeito à alteridade (visão etnocêntrica) e do outro lado articula uma dimensão psicológica que se traduz nos conceitos de projeção e sombra. O preconceito tem raízes históricas, sociológicas e econômicas relacionadas a imposição de uma determinada forma de existência sobre outras, como apresenta também efeitos psicológicos.
O estigma por sua vez representa a marca que alguns sujeitos carregam, sendo que sua origem histórica está relacionada às marcas feitas no corpo dos que cometiam crime. Quanto ao estereótipo, Alessandro afirmou que seu conteúdo pode ser positivo ou negativo, sendo praticamente uma função cognitiva normal já que a realidade é muito complexa, havendo a necessidade de interpretá-la rapidamente. O estereótipo permite que se compreenda/“carimbe”/formate rapidamente as pessoas de um determinado grupo. As mulheres e orientais, por exemplo, carregam estereótipos com conteúdos positivos e negativos. Os negros, na maioria das vezes, carregam estereótipos com conteúdos negativos. O estereótipo diz respeito mais ao grupo do que ao indivíduo e quando o sujeito carrega o estereótipo do grupo, ele não consegue se diferenciar enquanto indivíduo e consequentemente a pessoa não consegue atingir a igualdade perante os demais indivíduos.
A partir da definição dos conceitos acima, Alessandro destacou que a igualdade pertence ao indivíduo e a diferença pertence ao grupo. A pessoa tem que valer como igual perante a sociedade independente da orientação sexual, cor da pele, sorologia do HIV, etc. Por outro lado, enquanto determinados grupos nessa sociedade forem tratados de forma preconceituosa, discriminatória e, portanto, desigual, as pessoas que pertencem a esses grupos nunca atingirão a igualdade. Como então que igualdade e diferença viram desigualdade? Como que as diferentes formas de amar, pensar e determinadas características físicas acabam se transformando em desigualdade? Para o professor, isto acontece nas relações sociais. Ninguém sofre porque é negro e homossexual por ter nascido assim. As pessoas sofrem no encontro com o outro em uma situação de desigualdade. Um dos principais elementos que impedem as pessoas de conseguir ocupar lugares de igualdade na sociedade é o fato da pessoa carregar o grupo o tempo inteiro atrás de si, ou seja, sendo permanentemente visto a partir do estereótipo.
Para Alessandro, a grande igualdade é a possibilidade de poder se visto enquanto indivíduo pelas próprias ações e não precisar todo tempo “carregar o grupo” consigo. Exemplos: uma transsexual é advogada, trabalha em um escritório, mas as pessoas que a encontram no prédio acham que ela faz programa. O homem negro é psicólogo e quando entra no prédio o porteiro pergunta: “você é da manutenção?”. A psicóloga é negra, mora em Higienópolis, desce em um sábado pela manhã para fazer a unha e encontra no elevador uma senhora que pergunta: “Poxa, em um sábado trabalhando até essa hora?!”. Para Alessandro, todos aqueles que carregam a marca dos “alterados”, aqueles que de alguma maneira carregam algum signo portador de fragilidade por não possuírem uma adaptação social a uma sociedade violenta/hegemônica, precisam perceber que o grande direito é o de ser indivíduo e não precisar carregar o grupo consigo o tempo todo. O professor lembrou que “carregar o grupo” pode ter conteúdos positivos e negativos (estereótipos) que podem ajudar em uma entrevista de emprego, em uma abordagem policial e etc.
Na continuação de sua fala, Alessandro diferenciou ainda a preconcepção do preconceito. Todos temos preconcepções que utilizamos para interpretar o outro, o mundo e as relações que derivam do nosso processo de socialização (aquilo que aprendemos na família, escola, religião, redes sociais, mídia, etc.). Quando a preconcepção vira preconceito? Quando um sujeito A lança preconcepções sobre o sujeito B e apesar do sujeito B fornecer dados de realidade que não vão de encontro à visão do sujeito A e mesmo assim o sujeito A se manter na projeção/preconcepções sobre o sujeito B. Neste caso, a preconcepção passa a ser preconceito. Ou seja, o preconceito acontece quando a preconcepção se cristaliza e não consegue ser modificada. O preconceito é do indivíduo (é o indivíduo que tem preconceito) e a discriminação é da sociedade que discrimina os sujeitos através de seus agentes. A discriminação é o preconceito em ato (se revela em ação) e mexe diretamente com as formas de acesso, oportunidades e tratamento na sociedade. Eu só consigo discriminar quando eu tenho um papel social.
E o que é o racismo? Alessandro explicitou que o racismo é uma ideologia, ou seja, são ideias carregadas de poder com ampla circulação na sociedade, que postula a crença de que há raças/etnias melhores/superiores do que outras. Além do racismo, o professor indicou a importância de se considerar sempre o sexismo e a homofobia nas análises sobre desigualdade/discriminação. Para ele, gênero, classe e raça classificam, hierarquizam, localizam e subjetivam as pessoas na vida social e são marcadores importantes por causa disso. O racismo, além de uma ideologia, é uma estrutura, pois define vantagens e desvantagens na estrutura social – dependendo da cor/raça que a pessoa nasceu, ela terá vantagens ou desvantagens sociedade.
Além de ser uma ideologia e uma estrutura, o racismo também é um processo, pois é dinâmico e se revela de diferentes maneiras a depender do lugar. Nos Estados Unidos há um racismo anglo-saxão que se organiza a partir do binômio segregação/Apartheid. No Brasil católico-ibérico não teve lei e política de estado que criou escolas para negros e brancos como foi no Estados Unidos. O racismo no Brasil articula proximidade, intimidade e violência. Os efeitos psicossociais do racismo são exatamente o preconceito e a discriminação que acabam levando a uma humilhação social. No Brasil, o racismo só se manifesta em situações de conflito e disputa. Os efeitos ficam supostamente invisíveis no cotidiano porque há uma ideologia de que no Brasil existe uma democracia racial. Ex: no jogo de futebol quando o estádio inteiro grita macaco para o jogador – esta é uma situação de disputa em que o racismo se manifesta.
Além de ser uma ideologia, estrutura e processo, o racismo também é uma forma de aprendizagem. A criança desde cedo aprende que há cor de pele que vale mais ou menos, que há posições sociais que valem mais ou menos e, com o tempo, passa a internalizar essas concepções. Para Alessandro, o sexismo e a homofobia também são ideologias, estruturas, processos e formas de aprendizagem. Ao encerrar, o professor deixou claro que para ele um dos maiores problemas do racismo no Brasil é a ideologia de que vivemos em uma democracia racial.
Após a sua fala, Alessandro fez uma dinâmica com uma parte dos participantes presentes. A dinâmica não foi filmada a pedido dos participantes, mas uma experiência semelhante pode ser encontrada no link a seguir.
O psicólogo Emiliano debateu o racismo dentro da infância e adolescência. Inicialmente apontou o fato de que nossa sociedade está em uma lógica adulto centrada e é comum falarmos sobre as crianças distante delas, sem envolvê-las e sem considerar a importância do diálogo com elas. Muitas vezes não compreendemos que as crianças estão em outro lugar, diferente dos adultos e que não podem “crescer logo” para compreender o que desejamos. A antecipação para que possam crescer acaba fazendo com que os adultos não validem o tempo das crianças que precisa existir. Um fator importante mencionado pelo psicólogo é a idealização do lugar da criança enquanto um ser puro, sem maldade, que ainda não aprendeu determinadas coisas, entre outras concepções. Na prática, a criança desde muito cedo percebe e aprende os valores e expectativas sociais do seu ambiente, inclusive o racismo presente na sociedade, como exposto no vídeo abaixo exibido pelo profissional:
O vídeo mostra como precocemente as crianças introjetam valores de beleza, bondade e maldade a partir da cor da pele das pessoas. Tais valores passam a ser introjetados também por crianças negras, provocando um sofrimento psíquico precoce. Emiliano ao debater o vídeo mencionou como referência o livro Pele Negra, Mascaras Brancas de Fanon. O psicólogo ainda afirmou que o racismo se aprende cedo na vida e que estudos brasileiros psicológicos têm mostrado que aos 7 anos de idade o racismo está materializado psiquicamente. A compreensão, apesar de não ser intelectual, passa pela vivência e entendimentos cotidianos, como perceber que o irmão de pele mais clara costuma ter vantagens em relação ao de pele mais escura, que apesar de não saber o porquê, ele/ela (criança negra) ocupa o fundo da sala ou que na festa Junina da escola dificilmente ela (menina negra) é a noiva, entre outros exemplos.
O racismo na infância provoca inúmeros efeitos, dentre eles a evasão escolar já que a escola também subsiste na mesma lógica e muitas vezes é um agente reprodutor do preconceito e racismo presentes na sociedade.
Para o psicólogo, o racismo é estrutural, estando presente nas diferentes instituições, porém os indivíduos/nós são/somos os responsáveis pela reprodução da lógica existente nas instituições. Para lidar com esta questão, Emiliano defendeu que a prevenção é o melhor remédio, de maneira que os profissionais que atuam com as crianças possam reconhecer os danos provocados pelo racismo e prevenir para que esses danos não incidam sobre elas, especialmente o dano psíquico que degrada a saúde mental. No dia a dia é importante perceber a importância da comunicação com a criança negra. Quando pensamos, por exemplo, que boneca é tudo boneca, que casinha é tudo casinha e que filme infantil é apenas filme infantil.
Ao trabalharmos nesta direção, não percebemos que Ariel ou Branca de Neve são filmes que reproduzem uma ideologia racista/lógica dominante. Há sempre um príncipe forte, a princesa que é loira e a pessoa negra que aparece geralmente está na cozinha. Esta linguagem não é preventiva e desconsidera o fato de que a maioria das crianças em um abrigo ou outras instituições públicas é negra (pretos e pardos).
Falta um letramento que auxilie os profissionais a fazer um trabalho para o fortalecimento da identidade positiva das crianças e adolescentes negros. Para que este trabalho possa existir, é fundamental apostar e dar espaço para programas de conscientização e formação sobre os efeitos psicossociais do racismo. A questão é que, como a temática ético-racional acaba sendo diretamente atingida pelo racismo institucional e pelo próprio mito da democracia racial, a discussão sobre o tema e a formação para que os profissionais possam lidar ou desenvolver um repertório para lidar com os efeitos do racismo é constantemente desconsiderada. O foco geralmente acaba estando em temas como a psicopatologização da infância, que tem sua importância, mas que muitas vezes encobre outros fatores de sofrimento das crianças e adolescentes, como o racismo. Se não temos ideia dos efeitos/sofrimento que o racismo pode gerar, podemos correr o risco de colocar todos os casos de sofrimento em uma categoria diagnóstica do CID e encaminhar as crianças para o CAPS.
Segundo Emiliano, uma instituição de acolhimento tem a obrigação jurídica e ética de respeitar a identidade cultural e étnica das crianças, porém muitas vezes estes fatores não são considerados - pelo tipo de roupas valorizadas, as músicas que são permitidas (ex. muitas vezes não se pode ouvir funk), não há rodas de capoeira e não pode haver grafite. Para o psicólogo, os SAICAs também sofrem a influência do ambiente social que circunda a criança negra – marcadamente eurocêntrico e estigmatizante, sendo comum naturalizarem a compreensão de que as crianças e adolescentes negros que estão na periferia têm um tratamento diferente das demais crianças e adolescentes de outras regiões da cidade. O significado, por exemplo, da polícia é diferente para cada grupo (brancos e negros). O foco da apresentação de Emiliano é que a saúde mental das crianças negras é diretamente afetada pelo efeito do racismo em suas vidas, tal como evidenciado nos vídeos abaixo:
Para o psicólogo, as desigualdades raciais agravam as condições socioeconômicas de famílias negras, tornando-as mais vulneráveis a situações de abandono, trabalho infantil e outras privações de direitos fundamentais, além da destituição do poder familiar. O racismo também se traduz no Cadastro Nacional de Adoção - em março de 2015, o Cadastro Nacional de Adoção possuía 33.044 pretendentes, dos quais, 8.911, ou seja 26%, somente aceitavam adotar crianças brancas. Desta forma, a sorte das 3.788 crianças negras cadastradas encontrava-se condicionada por este fator discriminatório. O dado torna-se estarrecedor ao notarmos que no referido mês havia 5652 crianças cadastradas para adoção, ante os 33.044 adultos que queriam adotar. Ou seja, se a condicionante cor/raça não tivesse relevância na escolha, assim como a preferência por crianças de 0 a 3 anos, certamente seria bem mais fácil viabilizar estas adoções em nosso país.
Outro ponto destacado pelo psicólogo é o de quanto o imaginário social das pessoas é nutrido pelos meios de comunicação que acabam muitas vezes marcando a criança negra a partir dos estereótipos da doutrina da situação irregular, prevista no antigo Código de Menores, conforme ilustrado no vídeo abaixo:
Ao final o psicólogo voltou a mencionar a importância da atuação preventiva dos profissionais do sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente para evitar os danos produzidos pelo racismo na infância e para que a política de atendimento seja concretizada de forma igualitária, sem discriminação, finalizando a sua exposição com o seguinte vídeo:
Confira a oficina na íntegra (separada por temas):